Capítulo único

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Naquela noite, Maria Lúcia chegou tarde em casa. E tudo por causa da bendita aula que terminou 5 minutos mais tarde, e por causa do bendito ônibus que infelizmente não compreendia os imprevistos da vida humana, e passava no mesmo horário regularmente! Mas a questão é que o ônibus não era seu único inimigo.

Maria Lúcia sabia que seu pai não veria o atraso com bons olhos. Ela podia ter caído morta, e mesmo assim, um atraso era imperdoável, assim como qualquer outra coisa em sua vida. Já podia escutar os palavrões, a voz ríspida, o hálito alcoolizado, e todas as coisas que tornavam sua vida mais difícil, quase insuportável.

Colocou o primeiro pé na porta de casa, imaginando a briga da semana passada.

Flashback on:

- Então, onde você tava putinha?
- Eu? Você sabe que na escola, porque tá falando assim?
- Eu sei que não, vagabunda. Você é como a sua mãe. Uma puta, não estuda. Quero só ver você atrasar mais algum dia. Não vai sair dessa casa nunca mais. Tá ouvindo?... Me responde menina, quer levar outra surra?

Flashback off

Realmente não era fácil, e Maria Lúcia só queria ter um controle remoto para acelerar sua vida e evitar a confusão. Entrou na casa, não ouvindo os barulhos típicos de seu pai, somente um silêncio absoluto. Logo torceu para que ele não estivesse em casa, mas quando chegou na sala de estar, lá estava ele.

Caído no chão

Com uma garrafa de vodka ao lado. A menina, aproveitando a oportunidade, correu para o quarto, torcendo para que ele não lembrasse de nada no dia seguinte.

**************

Maria Lúcia acordou e rapidamente se vestiu para a escola com o objetivo de não encontrar o pai. Desceu as escadas de mansinho, até que notou que ele estava no chão, exatamente na mesma posição da noite anterior.

Preocupada, a menina se aproximou, e logo notou que realmente seu pai estava morto, mortinho, nenhuma respiração. Agora era mais um que partia e a deixava, dona de sua própria vida. Talvez se ela tivesse chegado mais cedo... mas será que ela queria o pai vivo? Esse pensamento a assustava, que tipo de pessoa não iria querer o pai vivo?

***************
2 meses depois.

Andressa era uma médium requisitada, famosa por possibilitar verídicas comunicações entre os vivos e os mortos. As pessoas que eram atendidas diziam que nunca tinham visto alguém tão comprometidas com o trabalho como Andressa, que muitas vezes, nas sessões chegava a catatonia.

Outros, diziam que Andressa era a prova viva de que um dom como esse era algo imprevisível, porque a própria Andressa muitas vezes dizia estar sem poderes, o que para seus clientes era um sinal de confiança de que Andressa realmente falava a verdade quando comunicava algo.

Maria Lúcia, sabendo dos poderes da mulher, resolveu marcar uma consulta para falar com seu falecido pai. Por isso, estava na porta da casa de Andressa, dois meses após a morte sua morte.

- Minha querida, entre por favor. - Disse a mais velha. - Sente-se nessa cadeira e me fale sua história. Me conte porque está aqui, o que leva você a querer se comunicar com seu pai?

- Bom eu... meu pai faleceu há dois meses, por conta de um coma alcoólico, e no começo eu me senti muito culpada, porque se eu tivesse chegado em casa antes, se tivesse reparado, talvez ele pudesse estar vivo... mas ao mesmo tempo, eu odiava meu pai com todas as forças, sabe? Ele me agredia, ele me agredia e doía muito. Eu queria falar com ele uma última vez, e dizer tudo que ele fez pra mim. Como eu fui infeliz, como ele estragou tudo, sem medo de ele me bater... queria soltar tudo isso, sabe? Não sei.

- Eu entendo minha querida. Muitas vezes não sabemos como queremos virar uma página, só sabemos que é necessário. Bom, vou tentar me comunicar com ele.

Depois de alguns segundos, em Estado de catatonia, Andressa começou a balbuciar palavras desconexas.

Eu... te odeio, desgraçada.
Puta nojenta
Eu...

Andressa então se levantou e quando menos percebeu passou a esmurrar o corpo de Maria Lúcia, que estava a sua frente, tentando desviar dos golpes, sem sucesso. Felizmente, quando começou a gritar por ajuda, o marido de Andressa apareceu na sala e segurou a mulher. Assustada, Maria Lúcia saiu da casa correndo pensando o que mais faltava para sua vida se tornar um completo desastre.

**************

Uma semana depois

Maria Lúcia ainda pensava no que havia acontecido, em todos os minutos de seu dia. Será que seu pai a odiava dessa forma? Ela não entendia o que teria feito para que ele tivesse tantos problemas com ela e sua mãe. Pensando nisso, atendeu o telefone, algo que raramente acontecia, porque Maria Lúcia estava definitivamente sozinha.

Era um policial, dizendo que os vizinhos de Andressa haviam escutado o ocorrido, e que ela estava sendo intimida para o julgamento de Andressa, para testemunhar o que havia acontecido quando foi atendida pela mulher.

Maria Lúcia, relutante, desligou o telefone, pensando no que poderia acontecer em seguida.

****************

1 mês depois

Chegou o dia do julgamento de Andressa, e Maria Lúcia estava curiosa para saber o que aconteceria. Uma parte dela queria muito que Andressa fosse condenada, porque sentia que todas as pessoas que passavam por sua vida conseguiam destruí-la, e sair impune. Mas ao mesmo tempo sabia que quem devia pagar por tudo era seu pai, e não Andressa.

O juiz começou a conduzir o caso, e quando a garota menos esperava, era a sua vez de relatar os fatos. Contou tudo como pode, sem omitir os detalhes. Depois da promotoria, chamou o advogado de defesa.

Uma palavra

Esquizofrenia

Esquizofrenia?

Esquizofrenia

Andressa não era médium, Andressa era esquizofrênica. Achava que tinha um super poder, característica do subtipo grandioso da esquizofrenia. Ela ouvia vozes e alucinava, por isso achava que falava com os mortos, mas tudo era uma mentira.

Ela associou a história de Maria Lúcia em sua mente, e acabou desenvolvendo um surto psicótico, e por isso agrediu a garota. Outras evidências, de acordo com o advogado, eram o estado de catatonia e a confusão mental, ao soltar palavras desconexas, isso se enquadrava no quadro clínico da esquizofrenia, e por isso Andressa devia ser inimputada.

O coração de Maria Lúcia parou por 3 segundos. Ela não queria acreditar que tinha vivido uma mentira, que estava tão preocupada com o que aconteceu quando era tudo fruto de um delírio, também não queria acreditar que Andressa escaparia facilmente do que havia feito. Não foi seu pai que a agrediu, mas sim Andressa, ela deveria pagar por suas ações. Mas era isso, o advogado tinha dito que ela não tinha controle sobre suas ações, e Maria Lúcia estava confusa.

Quando o julgamento terminou, o veredicto final era a inimputabilidade, mas Andressa não parecia feliz com isso. De qualquer forma, ela chegou perto de Maria Lúcia, e antes de deixar o tribunal disse:

- Sua mãe traiu seu pai. Você é fruto dessa traição. Espero que te ajude a seguir em frente.

Depois disso, saiu. Deixando Maria Lúcia e sua cabeça cheia de dúvidas para trás.

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