No escuro do sótão

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Esta maldita casa.

Era de se admirar que meu ex-marido a tivesse comprado por um valor tão baixo. Nos mudamos há um ano para a cidade de Retiro. Há muitos pontos comerciais e o mercado de trabalho ali é abundante. Gilson Alves, o homem por quem me apaixonei perdidamente, acariciava meu rosto enquanto sussurrava olhando minha face pálida.

—Será o melhor negócio de nossas vidas, Ilda, meu amor. A casa que encontrei tem um histórico sombrio, mas...sei que você não acredita em fantasmas, não é mesmo?

Direcionei meus olhos fundos nos dele, escuros como a noite.

—É, não creio nessas coisas. São ilusões da mente de quem diz que os vê!

Conhecemos a nova casa. Não me importava que há muitos anos ocorrera um crime hediondo ali. Sim, o tradicional desfecho do homem alcoolizado que mata a esposa e os filhos, depois comete suicídio. Tudo ali, na sala de visitas. O que me preocupava, de fato, era o estado de conservação. Parece que ninguém ousou apertar um parafuso naquele imóvel desde que o fato com os antigos moradores se tornou público. Pagamos pouco por ele, mas íamos gastar bem mais para torná-lo seguro e confortável. Vazamentos, fios desencapados, umidade nas paredes e teto, insetos transitando por todo canto e um sótão imundo.

Minha filha Solange fez uma careta de nojo a primeira vez que entrou. Adolescente de dezesseis anos, independente e rebelde. Tatuagens de dragões e crânios pelo corpo, maquiagem escura, um cigarro entre os dedos raquíticos. Já sofrera com o amor, também. Deixei que seguisse seu próprio caminho, mas me arrependi. Casei gestante dela aos vinte anos, então não me considero um bom exemplo. Gilson foi um bom pai, mas quando a fase de rebeldia dela começou, ele foi se ausentando.

Gilson arrumou um emprego de publicidade quando nos mudamos. Ele se relacionava com muita gente, seu celular não parava de tocar. Algumas vezes ele estava no banho, então eu atendia. Quase sempre uma mulher no outro lado da linha. Tudo bem, assuntos profissionais. Quando meu irmão Jurandir vinha me visitar, seu rosto ao me olhar dava pena.

—Ilda, sempre que venho seu marido não está em casa. Ele deveria ficar mais aqui, pelo menos até acabar as reformas.

—Tudo bem, Ju, eu me viro bem com madeira, pregos e serrote. Ajuda a passar o tempo e afastar sensações ruins.

—Quê tipo de sensação? — ele pergunta apreensivo.

—Desde que me mudei para essa casa sinto um mal estar, uma energia negativa, sei lá!

—Você não devia ter aceitado se mudar para cá. Sabe do passado dessa casa, não é?

—Claro que sei, mas não vi nada estranho nesses três meses. 

—Certo, porém, se precisar sair às pressas, minha casa está a disposição, ok?

Jurandir é o melhor irmão que alguém poderia querer. Recusei a oferta. No entanto, as coisas começaram a piorar um dia, quando entrei no quarto de Solange e a vi jogando sozinha a tábua Ouija. Não que eu acreditasse em comunicação com os mortos, porém de relance o sangue me ferveu nas veias.

—PARE DE BRINCAR COM ISSO, MOCINHA!

Ela estremeceu por inteira e fechou o tabuleiro correndo.

—Peguei emprestado de um colega do colégio e quis experimentar.

—Ah, é? E conseguiu falar com alguma "entidade"?

—Fiz umas perguntas básicas, teve uma hora que a seta parecia se mover sozinha pelas letras, mas...quando ia formar um nome a senhora entrou.

—Isso é perda de tempo! Vá estudar, que é melhor.

—Ah, não me enche, DROGA!

Ela se levanta e sai do quarto. Já esperava por isso.

Seis meses na nova casa e finalmente tinha o aspecto de restaurada. Fiz praticamente tudo sozinha. Jurandir comprava materiais para mim. Agora eu podia me dedicar a outros afazeres. Certa vez, visitei a agência que Gilson trabalhava, sem ele saber. Ele andava muito ocupado, ficando ali mais de doze horas por dia, mas quase não trazia dinheiro em casa. Não me comprava roupas, muito menos joias. Toda mulher gosta disso. E ainda mais uma mulher nas minhas condições. Eu precisava me sentir bela, desejável para ele. Infelizmente as noites de amor naquela casa sucumbiram nos primeiros meses. Talvez fosse a energia negativa que emanava de cada cômodo, tirando minha alegria e meus quilos. Mesmo pintada com cores calmas, a casa parecia trazer algo obscuro.

Oito meses depois de me mudar, notei que Solange ficou mais rebelde. Tinha pesadelos, dizia ouvir vozes e gemidos vindos do sótão. Ignorei tudo isso. Então, ela passou a ter convulsões. Não havia histórico em nossa família. Levei-a ao médico. Ele notou logo os furos no braço da jovem.

Um dia, resolvi mandá-la para a mansão de Jurandir, onde ela receberia mais cuidados. Contei a ela que Gilson havia viajado à negócios, pelo semestre inteiro. Agora estou sozinha na casa, cujo passado arrepiaria qualquer ser corajoso. Bem, quase sozinha. No sótão, onde guardava as ferramentas, ouvia gemidos angustiantes, ruídos estranhos e abafados. Solange tinha razão.

Esse pesadelo durou quase todo o semestre. Hoje completa um ano minha mudança e quero pôr um fim nisso. Subi até o sótão pela última vez. Entrei no escuro, acendi a lâmpada que instalei, entrei vagarosamente e encarei o "mal em pessoa". Braços e pernas amarrados, boca amordaçada, se arrastando e gemendo dentro da cela de madeira que EU construí. Fui a gaveta e apanhei uma seringa, a droga injetável que apliquei na minha filha, para que a família de Ju não desse crédito ao que ela suspeitava. Encarei o olhar suplicante de Gilson, o homem que peguei na traição, na cama com uma mulher na agência. Ele não me respeitou, NÃO respeitou minha leucemia, que me deixava pálida como os fantasmas que TALVEZ estivessem na casa. Não contei sobre a doença a mais ninguém além dele, há dois anos. Morrerei, mas só depois de minha vingança. Apliquei a dose toda no pescoço do traidor. A overdose cuidaria do resto.

No escuro do sótãoOnde histórias criam vida. Descubra agora