Atrasados

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Pleno verão, contraditoriamente uma noite fria, que tornava a ocasião perfeita para usar o velho casaco preto com o enorme capuz, já cobrindo a metade do rosto de Mário.
O espelho pendurado sobre escrivaninha refletia o menino franzino, que com a porta trancada,  não mais precisava fingir não se importar com as aparências.
Por mais que gostasse de insistir que beleza era um atributo superestimado, acreditava que o se vestir com o mínimo de bom senso, tornava o ambiente hostil da resenha entre amigos de amigos um pouco mais amistoso, e definitivamente aquela seria a noite em que esta teoria seria posta a prova de fogo.

O problema é que a ocasião perfeita deixa de ser perfeita quando se está a quase 40 minutos (contando com o trajeto, para não ser injusto) atrasado e com uma irmã subindo as escadas com tanto afinco, que facilmente poderia ser confundido com um rufar de tambores.

 
Lívia dá duas batidas ligeiras na porta, como aquelas batidas que pessoas atrasadas e sem nem um pingo de paciência dão.

— Mário, pelo-amor-de-Deus! — esbraveja a menina com a boca praticamente colada a porta,  era quase um grunhido — Faltam quinze minutos!
— Na verdade faltam dez! — argumenta, já abrindo a porta do quarto e borrifando o perfume nos punhos. Visivelmente calmo.

— Imbecil! Pede um táxi, que meu celular tá descarregado
— Então somos dois, porque o meu eu nem vou levar — enfatizava o menino já colocando o telefone em cima da mesa, enquanto sutilmente 'conduzia' a irmã de volta às escadas

— O QUÊ? Mas por quê?
— Se-gu-ran-ça. Pede pros pais da Marina vir buscar a gente ou então pro pai do seu contatinho, ué...

Mário nota um ligeiro hesitar seguido de um nem um pouco convincente: 

— Nunca! Parei de falar com ela
— Hmm... E até quando isso vai durar, sábado? 
— Ha-ha-ha. Deixa pra lá, engraçadinho. Vou pedir pro pai levar a gente

Aqui vai um parêntese... A maioria dos jovens em seus 18 anos e 11 meses já exibem seus namorados (ou ao menos pretendem), mas Lívia era diferente. Para ela a vida de solteiro deveria ser longa, e se possível, durar até os 32. Não acreditava em romances clichês e nem nas fantasiosas famílias perfeitas retratadas nas séries e filmes Hollywoodianos. Pelo menos é o que ela dizia a todos, a plenos pulmões. Defendia que a vida real era difícil, e frequentemente, um porre!

Enquanto no andar de baixo, mais especificamente na cozinha, a argumentação de Lívia garantia uma confortável carona aquecida pelo ar condicionado do carro de seus pais, Mário tomava um de seus milhares de bonés em mãos e descia as escadas já a caminho da porta de entrada

— Pra onde você pensa que vai? Já pedi pro pai levar a gente — gritou Lívia da entrada da cozinha ainda irritada por conta do horário
— Então 'des-pede', eu vou a pé! E se você vai comigo, tem que sair agora...

A menina não hesitou. Deu um grito avisando os pais, tomou um leve casaco de couro verde e acompanhou o irmão.
Lívia e Mário não frequentavam as mesmas festas desde os 14 anos. Mário nunca saiu muito com a irmã, preferia sair sozinho sem rumo ou hora para chegar em casa.

O milagre que uniu os dois irmãos em uma caminhada a noite foi a festa da melhor amiga de Lívia: Beatriz — amiga essa que sempre teve uma queda grande por Mário, que nunca correspondeu.

— Sabe que a gente tá atrasado né?! — retificou Lívia, como se não realizasse a mesma pergunta repetidas vezes ainda esta noite — Mas de repente a gente nem entra, né?...

— Pois é, de repente a Marina fala pra Bia sobre o que aconteceu hoje, não é?!

Mário sabia como chantagear muito bem as pessoas. Era um dom natural!
Piscava os olhos algumas vezes, seguido por um sorriso no canto da boca e dominava a vítima. Era infalível

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