Nem tudo é o que parece

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De novo, as vozes haviam começado a sussurrar coisas incompreensíveis em seus ouvidos. Já tinha mais de dois anos que aquilo acontecia, bastava se aproximar o aniversário dela, da adorável garotinha de pele alva e cabelos escuros que ele por tanto tempo carregou nos braços. Dois anos que a tragédia acontecera. Dois anos que ele teve de enterrar a própria filha.

    Horríveis e lamuriosas, as vozes não apenas suplicavam por sua atenção. Pediam ajuda, recitavam palavras de ódio e fúria tudo em um coro descoordenado e ensurdecedor. Mas ainda tinha algo de bom em tudo aquilo: bastava ele visitá-la e pedir que se acalmasse, que aquele fenômeno enlouquecedor terminaria. Bem, terminaria até o próximo dia 31 de outubro.

    Jack estava no ponto de ônibus para se proteger da chuva que caía de madrugada. Sua respiração acelerada e a dor que sentia conforme o volume das vozes aumentavam o faziam segurar a própria cabeça e rezar para toda divindade existente por uma trégua, mesmo que durasse poucos segundos. Os sussurros sempre ficavam mais altos a noite, mas não eram só os sussurros que ficaram o perturbando durante aquele dia.  Diferente do ano anterior, outros fenômenos começaram a acontecer.

    As lâmpadas no toldo do ponto, com aquela luz branca fantasmagórica e espaçada que gerava sombras alongadas, começaram a piscar enlouquecidamente. Um poste da rua também começou a piscar conforme as vozes dentro da cabeça do homem se tornavam mais altas e embaralhadas. Jack olhou para a vidraça de uma loja de artigos de festa atrás de si. O reflexo era de um esqueleto vestido em suas roupas, e ao seu lado, uma garotinha com  um vestido amarelo completamente manchado de sangue e olhar mórbido.

    Seu corpo estava gelado ao ponto de doer se mexer, mas aquela visão foi o suficiente. Ele começasse a correr ensandecido para o cemitério  que ficava no final daquelas ruas escuras cheias de ratos e com iluminação decadente. A pequena sacola de plástico com um cupcake de morango dentro sacudia e o bolinho se deformava cada vez mais, mas ele não se importava a essa altura.

“Não era para isso estar acontecendo… Ela sempre esperou até às três da manhã…” Conforme ele passava pela poças d’água, vitrines e janelas, Jack via sua figura esquelética sendo seguida pela da garotinha ensanguentada. A cada passo, as luzes da rua começavam a piscar cada vez mais e os pingos de chuva a ficarem mais gélidos e cortantes por causa do vento.

Ele pulou o portão de ferro e sentiu o ar pesado, como se alí só existisse ozônio ao invés de oxigênio. As vozes gritavam a sua volta ainda mais ao ponto de deixá-lo tonto, o estômago começando a se revirar. Uma olhadela para trás foi o suficiente para ele ver a menina de rosto distorcido e olhos leitosos continuar correndo atrás dele como se estivesse se divertindo ao vê-lo aterrorizado.

Finalmente, ele chegou. A essa altura, estava tão enjoado que era capaz que desmaiasse, mas ela não perdoaria se o fizesse. A pouca luz da lua iluminou a lápide com aquele nome tão familiar.

Mary, o papai veio, por favor, se acalme… Por favor - ele se ajoelhou perante o túmulo aos prantos, desajeitadamente tirado o cupcake da sacola e colocando sob a pedra - Por favor querida… Por favor...

    Enquanto implorava com a cabeça prestes a estourar com tantos sons ensurdecedores de lamentação, Jack abaixou a cabeça e ficou olhando seu reflexo de esqueleto na placa de metal com o nome da menina.

    Seu terror foi levado a um nível ainda pior quando as gotas de água começaram a se juntar e formar uma frase.

    “Não fui eu papai”

“Só pode ser ela… Tem que ser…” ele gritava internamente.

    Mas ele não teria uma resposta, a frase se desfez e as gotas rolaram canalizadas pelos relevos da placa de bronze com o nome da garotinha. Ao gritar a todos pulmões para ver se conseguia escutar mais algo além das vozes ensurdecedoras, uma sombra sólida começou a se erguer por detrás da lápide.

    Transtornado, Jack se pôs a correr, sentindo que sua vida se esvaia na presença da entidade sombria com cheiro de enxofre e putrefação. Por todo o caminho, as luzes enlouqueciam com a passagem deles.

    Em um passo, já dentro de casa, Jack bateu a porta e traçou uma linha de sal na porta que era empurrada pelo lado de fora. As batidas e sons agudos que seriam capazes de cortar uma alma ficavam mais fortes conforme as vozes a volta dele se aquietavam mas não desapareciam.

Pai? Está tudo bem? Por que tanto barulho? - a voz da segunda filha de Jack veio de um canto longínquo da casa.

    Ele passou pela sala de estar e as luzes se apagaram deixando toda a casa num breu quando um raio rimbombou. Depois de cinco segundos, elas voltaram a ligar, e na janela embaçada, uma mensagem estava escrita.

    “Corra”

    “Não… Não pode ser…” ele pensou enquanto se virava lentamente para ver a cena mórbida.

Lizzie… O que está fazendo? - ele perguntou com os ossos trêmulos e um grito preso na garganta.

Brincando com a Mary - a menininha respondeu apontando o corpo morto e em decomposição da irmã que ela arrastava pela casa.

O corpo da menina morta tinha novos cortes visíveis pelo tecido apodrecido e rasgado do vestido amarelo. A cabeça estava pendurada em um ângulo anormal e aflitivo. Na outra mão, Lizzie tinha uma faca pequena, a mesma que tinha matado Mary em um suposto acidente.

Quer brincar também papai?

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