Capítulo Único

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Como de costume, fui à padaria pela manhã para comer alguma coisa e observar um pouco da vida diurna da vizinhança para ver se conseguia alguma ideia para o livro que estava escrevendo, mas era tudo tão calmo e parado, quase não valia a pena.

O dia não estava nada bonito na visão dos outros, mas para mim parecia perfeito: nuvens cobrindo o céu e uma chuvinha bem rala acompanhada de uma brisa leve morna que fazia a chuva parecer estar em itálico.

Deslizava minha xícara de café bem quente em pequenos movimentos circulares no balcão para esfriar um pouco enquanto esperava meu queijo quente ficar pronto. A chuva apertou e a paisagem do lado de fora passou a ficar acinzentada e cheia de pessoas correndo e reclamando. Era no mínimo engraçado. Peguei o celular para anotar a cena, mas meus olhos focaram no enorme casaco preto com pernas que caminhava de pressa em direção à padaria. Era um daqueles casacos bem cheios que se vê nas ruas em invernos rigorosos e que não me parecia nada adequado para uma manhã abafada de sábado.

—Está chovendo ou nevando? — Brinquei com Lenny, o balconista, que me respondeu com um sorriso e movimentos de negação repetidos. — Não dá para entender essas pessoas... — finalmente tomei coragem de bebericar o café.

Quando o capuz da grande fortaleza fofa foi abaixado, surgiu um rapaz aparentemente irritado com a roupa molhada. Seu cabelo castanho liso estava escorrido no rosto e seus olhos amendoados revelavam uma descendência... chinesa(?). O rapaz era alto e parecia não muito mais velho que eu, com seus 24 ou 25 anos, a pele era com certeza maquiagem (por mais que não parecesse, pois era impossível não haver uma manchinha de sol ao menos). O rosto era redondo e ficava ainda mais semelhante a uma bolinha quando sorria, pois era isso que estava fazendo e só depois de um tempo percebi que era por eu estar o encarando sem disfarçar por um longo tempo.

—Estou tão molhado assim? — Ele disse sentando ao meu lado no balcão.

Ele disse para Lenny trazer o de sempre. Que sempre? Eu sempre venho aqui e ele nunca está. Não deveria haver um sempre.

Eu ainda não sabia como reagir. Não acredito que pela primeira vez estava sem graça por encarar um desconhecido e ele perceber. Acredite, isso acontecia com certa frequência.

—Não... — fiquei pensando em uma desculpa que não me fizesse parecer uma psicopata — achei suas feições interessantes, queria pôr em um personagem do meu livro e estava tentando descobrir sua descendência. — Disparei a falar e falhei em não parecer uma maluca.

Apertei os olhos na vaga esperança de abrir e ele já ter corrido e eu não precisar mais olhar para o seu rosto.

—Nacionalidade. — O olhei confusa. — Talvez a pergunta certa seja a minha nacionalidade, já que estou apenas visitando esse país.

Sem pensar, sorri confortada pela naturalidade com que ele tratou minha fala esquisita.

—Isso.

—Sou coreano. Sul-coreano.

—Já ia perguntar se você era fugitivo. — Ele riu e dessa vez mostrou dois buraquinhos nas bochechas. — Espera... se você está só visitando, como tem um "de sempre"?

—Minha visita dura seis meses. Intercâmbio. — Ergui as sobrancelhas e concordei.

Ele me olhou de cima a baixo e riu.

—Eu que devia estar de encarando, senhora Coelha. — Ele fez orelhinhas de coelho com as mãos me fazendo lembrar que estava de pijamas e que esse tinha um pompom fofinho como rabo.

—É o meu charme principal. — brinquei.

—Mas com certeza não é o único.

Não soube responder, mas, graças a meu bom Ed Sheeran, Lenny chegou com o meu queijo quente e as torradas do rapaz e eu tive uma boa razão para não falar por um tempo. Isso não o impediu de ficar me encarando com uma expressão que eu não conseguia decifrar se era um olhar brincalhão ou se ele estava tentando flertar comigo às oito horas de uma manhã chuvosa, abafada e, graças a ele, divertida.

—Como o explica o fato de eu nunca ter te visto? Estou aqui sempre, nesse mesmo horário. — Continuei o indagando.

Era estranho, pois ao mesmo tempo eu que queria dar um fim àquela conversa e sair correndo com meu rabinho de coelho dali, eu queria perguntar sobre muitas coisas e saber tudo a respeito daquele estranho.

—Você sim, eu não. — Simples e direto.

O silêncio se estendeu depois disso até a hora que ele levantou, agradeceu a comida, me disse adeus fazendo uma reverência sutil, disse um "Nos vemos por aí" e se foi.

Eu queria continuar essa história dizendo que depois disso, ele fez de tudo para chegar sempre nesse horário e que nos conhecemos melhor e um sentimento cresceu entre nós; que estávamos perdidamente apaixonados um pelo outro e que o tempo de intercâmbio dele estava acabado, o que nos fez planejar a minha ida para Seul com ele ou a estadia permanente dele aqui; queria dizer que nossos filhos nasceram com os olhos amendoados como os dele, mas com os meus cabelos cacheados e que a menina era mais atentada que o menino; que mesmo depois de muitos anos o amor nunca mudou, que nossas almas permaneciam jovens independente do tempo; queria dizer que as coisas nunca acontecem por acaso e que você pode encontrar o amor em qualquer lugar. Mas tudo que posso dizer é que eu nunca mais o vi nem na padaria, nem na rua, nem em lugar nenhum. Até perguntei a Lenny se o rapaz ainda frequentava a padaria e ele disse que, no dia seguinte ao nosso encontro, o rapaz chegou de tarde muito nervoso ao telefone cuspindo frases em coreano como se estivesse prestes a estrangular quem quer que estivesse do outro lado. Disse que ficou até com um pouco de medo na hora de perguntar o que ele queria pedir.

—Talvez eu deva passar a vir à tarde... — Disse para mim mesma enquanto fazia movimentos circulares com a xícara de café.

À Tarde |KNJ| oneshotOnde histórias criam vida. Descubra agora