Vermelho

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Cresci ao lado das Árvores. Quando lembro de casa, lembro da luz transpassando as folhas e entrando em meus olhos. Um verde-claro, limpo. Parecia ter sido lavado pela mesma pureza que carregava na infância. Diferente do meu irmão, que sempre esteve com as caras enfiada nos livros ou no computador, sempre gostei da terra, do mato. Das Coisas Vivas. Sabia os nomes deles, as aranhas coloridas, outras peludas fazendo sua arte de tapeçaria. As mariposas invejando e reverenciando, de asas baixas, as borboletas Coloridas; eretas, tão convencidas de si mesmas. As minhocas eram minhas preferidas, ao mesmo tempo as achava triste... Todo um esplendor ao redor delas, mas permaneciam enfiadas debaixo da Terra. Irônico, trágico. Fazia meu tipo.

Mãe, professora. Pai, Engenheiro químico. Cada um com suas carreira brilhante. Aos finais de semana íamos para a "aventura", era assim que chamávamos. Entrava com meu Pai no bosque próximo de casa, uns vinte minutos apé. Aquelas árvores me convidando para entrar. Até hoje não sei se aquilo é uma área protegida ou se simplesmente não a acharam ainda. Tudo o que sei é que ainda está lá, intacta, do jeito que sempre foi. Meu pai sabia o que fazia, não saia levando uma garota com seus sete anos pro meio do mato selvagem. Antes de me levar em algum lugar, sempre ia antes. Sempre. Dava um jeito. Cortava um pouco o mato, vasculhava o chão com cuidado, folhas caídas, buracos suspeitos. Me achava uma verdadeira desbravadora. Dai veio minha paixão por biologia. Depois de um tempo a aventura passou a ser um passatempo. O bosque, um amigo. E como bons amigos, passamos a gastar algum tempo a sós, aproveitando um ao outro.

Fui para lá quando tive que mudar de escola para o ensino médio. Quando minha festa de quinze anos não foi nada bem. Quando o cara que eu estava afim acabou ficando com minha amiga depois de me encher de ilusões. Quando não passei de primeira no vestibular. Essas foram as vezes que escapei sozinha, mas isso era pontual e só caminhava nas rotas que já conhecia. As que meu pai trilhou. Fora isso, lá estava eu nos finais de semana. Com meu pai, andando nos caminhos já traçados. Os compromissos e a vida adulta foram vindos e as visitas no bosque foram ficando cada vez menos frequente. Até que passei na universidade e fui morar em uma pensão. Chorei, pela saudade dos meus pais, minha cidade e meu bosque. Mas faz parte.

Depois disso, ia passar as férias e alguns feriados prolongados em casa.

Era 23 de dezembro, a universidade tinha ficado em greve por um tempo, então só pude ir para casa no finalzinho do mês. Já senti o clima pesado quando minha mãe me pegou no aeroporto. "Nada" ela disse, "Só a correria". Sempre a tal da correria. Cheguei em casa e vi meu pai acabado, sem muito ânimo para me receber, mas se esforçando. Meu irmão não ia conseguir vir, ia passar o natal com a namorada. É sempre estranho a sensação de nostalgia quando entro no meu quarto antigo. E da sacada, vi as Arvores nos rodeando e me senti recepcionada com um leve balançar. O cheiro de mato e a chuva pedindo para cair só deixava as coisas mais animadas.

Fui falar com meu pai, pedir para me levar. Quer dizer, irmos juntos. Me respondeu com "Temos que conversar". A tal cena, os dois sentados na mesa de madeira maciça. Eu, do outro lado, tremendo diante do silêncio fúnebre deles. E a conversa fiada e enrolada de alguém que não quer contar o que tem que contar.

Passou pela minha cabêça algumas opções.

"A Empresa Faliu"

"Sua Vó Morreu"

"Seu Tio Astolfo Morreu"

"Eu tenho cancer"

Mas nunca, juro por Deus, nunca me passou pela cabeça que um dia eu ia estar sentado tendo que ouvir meu pai dizer.

"Nós Vamos nos separar"

Em algumas Famílias você vê isso vindo. Mas parece que ignorei todas os alertas. Pra mim não deu, não consegui segurar direito. Não Eles. Não quis ouvir mais nada. Bati as duas mãos na mesa, os anéis fizeram questão de reforçar o estrondo, saí da cozinha e ouvi bem no fundo minha mãe já caindo em lágrimas, me pedindo pra voltar e meu pai soltando um Rancoroso "Deixa ela ir".

Passei na garagem, com os olhos embaçados e a visão turva, peguei uma bota. Troquei o calçado com medo de ser interrompida e fui, vestida como estava, para o bosque. A estrada estava vazia, sempre esteve. Todo aquele pedaço de asfalto no meio de um verde sem fim, só pra mim, e eu perdendo o momento banhada em lágrimas. Tudo que conseguia pensar era nos meus pais. Como aquilo era doloroso demais para deixar passar e como simplesmente não podia fazer nada para impedir. Encontrei o bosque com sua entrada convidativa, a cerca com arames largos, fáceis de serem passadas entre e as árvores, lá de cima, desciam em uma linha curva. Entrei no bosque e fui em linha reta. Se quer o encarei ou apreciei como deveria. Foi tão rude quanto ver um velho amigo e o cumprimentar sem olhar nos olhos.

Sabia que estava fora da rota quando o mato começou a bater no meu rosto e não havia mais um caminho certo. Nada daquela beleza parecia me tocar ou fazer sentido. Era frustrante. Fui para lá para me sentir melhor, mas era memória afetiva demais. No fundo, eu sempre fui para lá tentando me esconder. Como uma minhoca que se enfia na terra. Para se esconder da luz. Afinal, ela pode ser bonita, mas te mostra coisas que você não quer ver.

Nisso aconteceu. Não é fácil lembrar das coisas ruins que se passaram, mas acontece, aconteceu.

Lembro da cabecinha da cobra saindo por debaixo da folha, quando vi, já estava em meu calcanhar. A mandíbula da criatura se moveu, apertando o tecido da bota, até que senti a picada na minha pele. Um veneno estava correndo no meu sangue. Como fui estúpida. Era verde, bem clarinho, pequeno e sorrateiro. Depois de perceber o que havia acontecido, só reparei em seus olhos arregalados. Esses eram vermelhos.

A folha, a mordida, o verde-claro se contorcendo, desaguando um sinal vermelho em meu calcanhar. Foi tudo tão rápido quanto uma ideia, um pensamento, que lhe atinge e vai embora logo em seguida. Doía, doía muito. Mas doía ainda mais lembrar o que deixei acontecendo em casa. Hoje eu sei que não posso me culpar; mas até hoje não sei como não vi nenhum sinal. Será que eles esconderam tão bem assim ou eu que não reparei? Essa cobra maldita estava bem diante dos meus olhos ou eu que a Ignorei? Já não importava mais. Só sentia o veneno se espalhando pelo meu corpo, sorrateiro me atingiu, mas violento me perturbava. Eu sabia o que tinha que fazer. Amarrar a perna para parar a circulação. Matar a Cobra para levar como amostra, e ir para casa.

Casa.

Mão tudo o que fiz foi sentar no chão e esperar o veneno me consumir. Tirei a bota e vi a marca escarlate na minha pele, um tempo depois vi a cobra passando por mim, seguindo seu rumo floresta a dentro. Por fim, deitei sobre as folhas secas, com um dos pés descalços, a cabeça apoiada em uma raiz saltada, Ouvia alguns pássaros cantarem sua canção. Olhei para os céus, mas as árvores tampavam minha visão. Imponentes, lançavam o seu olhar de cima para baixo e jogavam folhas verdes para me velar. O vento bateu, soprando um consolo; fui acalmando as batidas do meu coração e me deixando levar pelo abraço da floresta.

Acordei ouvindo passos, senti também meu corpo sendo carregado por alguém. Mas não senti medo, conhecia muito bem aqueles passos firmes. Estava com o tronco encostado com o seu. De tal forma que minha cabeça ficava na direção oposta de seu olhar e minhas pernas estavam pendentes para o outro lado de seu corpo. Não sabia que ainda podia ser carregada por ele. Meu peso estava todo sobre suas costas e ainda assim não perdia a postura. Ele chorava baixinho, tão baixo que quase se perdia no som de toda a floresta. Tenho certeza que se ele soubesse que estava acordada, pararia imediatamente seus soluços miúdos. Talvez por isso não me mexi, para sentir seu peito mexer enquanto respirava, igual quando criança. Ou talvez, penso agora, queria a sensação de ser carregado por ele uma última vez.

Só então lembrei da picada. Não sentia dor alguma nas pernas. Me perguntei se já estava grave assim. Olhei para meu pé nu. Nada. Sem nenhum ponto ou ferimento, só a sujeira de barro. Por fim, saímos da trilha, passamos pela cerca arregaçada. Olhava com cuidado e atenção para tudo que ele deixava para trás. As madeiras jogadas e o arame farpado bagunçado, jogado por cima da terra batida. Já na pista, meu pai parou de chorar, sabia que naquele horário tinha bastante movimento. Sentia o sol se pondo em meu rosto. Eu queria chorar, mas por algum motivo segurei. Mordi o lábio inferior e vi a imagem em minha frente. O asfalto e as folhas banhadas em uma cor angustiada, mas pura. Não era nem um azulado derrotado da noite, nem um laranja vitorioso e revigorante. Era um passional e ansioso

Vermelho.

VermelhoWhere stories live. Discover now