Havia neve na calçada, neve manchada de sangue. Largas gotas de sangue, marcas antigas no sangue fresco. A neve sempre subindo pela calçada e tampando os letreiros, os muros, as saídas de ar quente. Um homem doente gostava de se deitar por ali. Seus olhos estavam cegos, as mãos calejadas e o peito em aflição. Não comia bem, se alimentava de restos. Guardava restos tão bem quanto os sabia regurgitar para depois engolir novamente. Sufocava. Remoía restos esquecidos a ninguém. Se mantinha daquilo que ninguém queria. Todos os dias, manhã ou noite, era tempo de deixar palavras esquecidas a ninguém. Lembranças duras do dia, mágoas, coragens repentinas, vontades súbitas que aparecem faladas na boca quando se está caminhando sozinho. Palavras esquecidas do dia, palavras que precisam ser esquecidas para que se possa sorrir à mesa durante as refeições.
O homem doente recolhia essas palavras. Vivia delas, pegava cada uma dessas inescrutáveis palavras sussurradas pelos cantos das bocas e com elas enrolava suas feridas. Cobria seus machucados como quem enrola uma gaze na carne aberta. Com cuidado, com minúcia, com a perícia cultivada pelos anos sem ninguém. As marcas de seu corpo na neve já não faziam diferença. Só fediam como um desagradável trecho na cidade por onde nos habituamos a passar de vidros fechados.
Uma mulher de perfume caro passa todas as noites vomitando seus restos. O medo de ser violentada, a lembrança quase que palpável e gorda de quando foi violentada, a raiva que lhe fazia ter pesadelos recorrentes onde ela era uma assassina capadora de homens de merda. O pesadelo sempre começava do mesmo jeito: ela estava nua escolhendo um vestido em frente a um grande espelho, quando sentia cheiro de merda. Percebia, então, que não estava sozinha. Pelo espelho via um homem enorme que a observava enquanto se masturbava com as mãos ensebadas...
Continua...
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Neve na calçada
Mystery / ThrillerO pesadelo sempre começava do mesmo jeito: ela estava nua escolhendo um vestido em frente a um grande espelho, quando sentia cheiro de merda. Percebia, então, que não estava sozinha. Pelo espelho via um homem enorme que a observava enquanto se mastu...