Os dias se passaram e com eles a agradável calidez do verão. O outono espargindo seus tons de amarelo e marrom por onde seus enormes braços conseguiam alcançar trazia consigo também as primeiras chuvas e a álgida atmosfera que se assemelhava a uma saudação antecipada do inverno que viria a seguir. E foi com a mesma naturalidade que, em passos desapressados, a astenia se abrigou naquela família.
Sentada aos pés da cama a jovem menina repartia a atenção entre o sono inquieto do pai e o bordado que executava. Apesar de muito moça tinha mãos realmente ágeis e habilidosas, a janela quebrada agora estava vedada com uma colcha que ela mesma fizera, uma de suas tentativas para que seu pai melhorasse, mantendo o frio lá fora, mas isso deixava o quarto abafado. Gotículas de suor acumulavam-se na testa da menina e ela as enxugava com o dorso da mão de quando em vez.
- Lucia... – A voz fraca do rapaz reverberou quase como um gemido. A garota ergueu os olhos sem deixar que suas mãos parassem, há muito tempo não ouvia o nome de sua mãe, isso fez seu semblante franzir refletindo sua preocupação. Lentamente o pai abriu os olhos e avistando a menina seus lábios se retorceram em um sorriso fraco. –Sophia... - gesticulou para que ela se aproximasse, o que foi obedecido de pronto. – Está se tornando uma bela moça... Há de encontrar um bom homem que a despose... Você ainda tem praticado as lições de letramento que a Senhorita Garcia, generosamente lhe ofereceu? - Sophia anuiu, a cada manhã anotava em seu caderninho a estória que seu pai lhe contara na noite anterior, algo fácil de fazer, pois elas permaneciam vivas dentro dela mesmo depois de muito tempo. Embora não concordasse com a suposta generosidade daquela senhora nada disse, ao que seu pai prosseguiu. – Por que não pega seu caderno? Depois que adoeci... Ficou difícil lhe contar estórias... Mas... Quero continuar aquela agora...
Sua filha não pôde esconder a empolgação, largou tudo sobre a cama e adiantou-se às pressas atrás do caderno que guardava com tanto carinho, sua mocidade e ingenuidade revestiram a emoção com esperanças e sonhos, talvez isso significasse que seu pai estava melhor, talvez só precisasse esperar um pouquinho mais e tudo estaria de volta a seu lugar. Retornou ao quarto correndo e sentou-se bem ao lado da cabeceira do leito para que pudesse ouvi-lo melhor a medida que escrevia.
- ...Apontou para a senhorita e disse... "Minha". Ela abriu aqueles olhos de ébano que pareciam duas pedras preciosas de tão grandes e reluzentes. As faces logo ficaram rosadas, ele a viu tentando disfarçar o sorriso, mas ainda assim a jovem disse "não" e foi-se embora com a cabeça apontada pro céu e o trotar arisco tal as moças da sociedade são ensinadas a ter, porque mulher não pode ficar dando confiança pra homem não, eles são qual onça pintada, chega de mansinho, fica de esgueira, sempre pronto para dar o bote, e ainda que a fome lhe falte jamais denegaria uma galhofa... – Sophia franziu o semblante, não conseguia compreender o significado daquilo, mas o rapaz não lhe podia ver a expressão, narrava de olhos fechados de modo manso e arrastado, como se estivesse prestes a adormecer e para a menina já não seria surpresa se o fizesse, desde que começou aquele conto, semanas atrás, tornou-se comum vê-lo adormecer em meio a uma frase, ou não se sentir bem o suficiente para continuar.
No começo achou estranha a característica de continuidade desse conto, era o mais longo que ele lhe contara todos estes anos, mas atribuiu isso ao fato de, por estar debilitado, seu pai não ter mais saído de casa, por tanto não tinha novos objetos para trazer e torna-los centro de sua narrativa.
Uma semana antes, vindo da visita ao mercador com quem tinha negócios de troca e venda, trouxe consigo um jasmim. Naquele ponto a narrativa começava a perturbá-la e não sabia porque já que grande parte do significa de tudo o que ouvia lhe fugia completamente ao entendimento. Assim, pensou que se levasse algo novo, que fosse ao agrado de seu amado progenitor o estimularia em mudar a prosa e até poderia, quem sabe, animá-lo um pouco.
"Papai, trouxe algo para o senhor, será que tens algo para me contar sobre essa linda flor?" Lembrava-se de ter dito. No entanto, longe do que esperava, o que viu nos olhos dele foi uma profunda e avassaladora tristeza, acentuada pelo sorriso afetuoso esboçado à sua filha, acariciou os cabelos da criança gentilmente, "Te desgostas ouvir o que tenho dito não o é? Não tens culpa, e ainda assim a vida não há de poupar-te por inocência... Mas se não queres mais ouvir o que digo, apenas permita-me saber com certeza e assim não mais agitarei seu pequeno coração..." Não sabia como responder, os olhos encheram de lágrimas e o abraçou, não mais tornando ousar tentar desviá-lo. Homens tinham seu lado orgulhoso, ela viria a entender mais tarde, uma situação daquelas era demasiadamente desonrosa.
A tarde já findava e Sophia organizava o quarto, seu progenitor dormira há pouco, aquela era sua chance de entregar seu bordado e, quem sabe, conseguir mais alguma coisa no mercado. Saiu às pressas, não gostava de deixa-lo sozinho, então calculava que quanto mais rápido fosse mais rápido voltaria.
Os olhos do pai abriram-se lentamente, mediante àquela sensação de estar sendo observado, não era surpresa, passara muitos dias perguntando-se quando aconteceria.
- Parece que és um homem de palavra, aqui estás tu, como me prometera... – Disse em voz complacente, recebendo um sorriso de escárnio como resposta.
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Era uma vez
FantasyTrazendo o convite para uma retrospectiva a tempos remotos Era uma vez narra a relação de amor de uma família que perdura mesmo com a morte. Sophia, uma jovem que desde pequena enfrenta grandes dificuldades, tem seu pai como centro de tudo o que con...