Abri o portão e retornei para pegar o trambolho que era aquela caixa grande de papelão, apertei-a contra a barriga, apoiando-a com as mãos e dividindo seu peso entre os braços. Precisei fechar o portão com o pé direito e quase perdi o equilíbrio. Olhei para o fim da avenida iluminada pelos postes altíssimos, oscilei para ir. Por causa da miopia, as luzes pareciam fogos de artifício suspensos no ar. Os carros que passaram por mim nos segundos em que permaneci parado na calçada eram convidativos, eu quis entrar em qualquer um deles para ir o mais longe possível. Por fim, retornando à realidade daquela hora, eu tinha apenas meus pés, um destino e o sentimento de dever sempre me acompanhando. Alguém uma vez tinha me dito que amor não era dever, mas eu o sentia assim. Andar, naqueles instantes infindos, não era apenas o movimento comum, um pé após o outro, passo a passo em uma direção dada pela rotina, como se o corpo se deslocasse sozinho pelas ruas mesmo que na mente qualquer outro caminho quisesse ser tomado. Andar queria dizer muito mais. Andar era meu grito de que eu ainda insistia em nós, insistia em cumprir o que quer que fosse exigido, mas por quê?
Nos primeiros passos, perguntava-me se Lucas tinha ideia do peso da encomenda para me fazer levá-la sozinho. Presumi que por suas distrações típicas poderia sequer imaginar o quanto de coisa foi posto dentro da caixa durante esse tempo, inclinando-me a me arrastar de uma calçada à outra, atravessando vagarosamente os quarteirões, limitado pela dificuldade. Eu não sabia (ou não queria descobrir) se estava indo porque queria ou se apenas me sentia sob pressão, só sabia que assim como meu corpo estava antes aquecido na cama, o pedaço de chão era adequado para aquele incômodo que eu levava nos braços, e nada deveria ter deixado seu lugar na casa. Ele poderia ter vindo depois de me ligar, eu poderia ter feito um convite que restabelecesse o seu, mas ninguém teve tempo para pensar em um encontro melhor enquanto as reclamações, os pedidos e as justificativas preenchiam o silêncio.
Um pouco antes do meio do caminho precisei parar, tinha a sensação de que não iria tão longe se continuasse seguindo reto tentando ignorar aquele desastre segurado pelo caos desengonçado que era eu. Apoiei a caixa nas bordas de uma lixeira para descansar e mentiria se não dissesse que não pensei em jogá-la para dentro e voltar para casa me fazendo de desentendido e esquecido. Contudo, a cada segundo algo acontecia e eu não podia desistir. Lucas me esperava sentindo necessidade de ouvir sincericídios da minha voz, desejava o Marcelo que conheceu em novembro, por acaso. Eu era um Marcelo de fevereiro pós-carnaval que por si só carregava pesos do que restou dos porres, pois o meu eu antigo foi arrastado por um bloco até se perder. E antes que qualquer porre pareça sinônimo de traição, afirmo: todos foram por saudade. Por ela meus amores sempre são trocados.
Quando voltei a andar, sem bem entender o porquê da insistência — eu sei que sou teimoso até quando não quero ser, o que eu levava para alguém se tornou algo que eu trazia comigo, pertencendo a mim e cada vez mais pesado. Minha consciência e meus remorsos do que fiz e não fiz saíam de mim direto para a caixa de papelão. Se eu entregasse esse alvoroço encaixotado, estaria imediatamente impedido de me queixar das ausências e desatenções de Lucas que resultaram em uma encomenda dentro da minha casa por semanas. Tampouco poderia fazer algum drama por ter me deixado sozinho no carnaval, pois nas tralhas de arrependimentos estavam misturados e incrustados os minutos de contentamento que aproveitei sem piedade sem ele. Os depósitos que eu ia fazendo enquanto andava não poderiam ser retirados e a cada metro andado se tornava mais complicado parar, mais complicado aguentar.
Já prestes a chegar, eu não conseguia imaginar em que canto Lucas poderia deixar a caixa depois de recebê-la de mim, e não acreditava em sua força para levá-la do bar até sua casa. Certamente não aguentaria. O que eu fazia por ele era muito mais do que deveria ser feito por nós dois. E, se não entregasse aquilo, eu me tornaria a pessoa que desapareceu entre os confetes com uma encomenda roubada. Acabaria que aquele papelão todo ficaria comigo até me tomar por inteiro, me embrulharia junto dos itens e emoções já despejados.
Eu precisava fazer a entrega e depois me afastar. Ou deveria ser suficientemente honesto para ficar e vê-lo abrir a caixa. Ou ainda, em um total desespero, deveria convencê-lo, Lucas, sem deixá-lo ao menos tirar aquilo de minhas mãos, que não era uma coisa boa e que deveríamos, juntos, jogar fora. Como são arremessadas para longe todas as verdades enquanto se conta uma mentira, aquilo poderia ser arremessado enquanto eu pensava em qualquer coisa melhor para lhe oferecer.
Quando o avistei em frente ao bar com a feição séria, assim como eu havia imaginado, a caixa desvencilhou-se de meus braços à força para cair no chão. Não restou nada em mim além do meu físico mal cuidado, pois todos os sentimentos entraram pelas frestas estreitíssimas do embrulho frágil, tornando seu peso insuportável. CUIDADO, FRÁGIL na caixa. CUIDADO, FRÁGIL em mim. Pensei que fosse romper seus lacres e revelar tudo ali próximo da rua, perto dos bêbados (eles não entenderiam). Lucas se aproximou com a cautela que eu abandonei, comportando-se pela primeira vez como a pessoa mais racional da relação. Mas seu olhar de quem viu algo incrível me apavorou de tal forma que congelou meu corpo. Eu estava impossibilitado de fugir, impossibilitado de argumentar ou convencer e impossibilitado de me justificar.
Eu quis que aquilo ainda fosse imaginação e que se eu piscasse estivesse novamente escorado na pia tomando mais um pouco de água gelada. Minha garganta ardeu pela sede instantânea.
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A Caixa
Short StoryLucas recebeu uma ligação de Marcelo às duas da manhã, precisava levar a ele a encomenda deixada em sua casa. Uma caixa, uma caminhada longa, uma relação. Tudo pesava demais. Quanto mais Lucas andava, menos queria chegar.