Capítulo Único

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"Aqueles seres celestiais
Aqueles os quais
Adornam com asas as tais
E sopram o vento no caís,
Choram àqueles finais.

Algum desses anjos talvez
Visitou-me certa vez
Mostrou-me a minha estupidez
Mas também,
Sensatez.

Tomou meu coração
Me cantou uma canção
Me prometeu em oração
Que comigo estaria
Em qualquer ocasião.

Mas
Desapareceu
Frente os olhos meus.

Como os belos sonhos
Para nunca mais,

Voltar."


Dedico eu este singelo e humilde escrito, ao anjo que um dia tivera a chance de chamar de meu. Sei que mereces muito mais, mas sua incrível exuberância se é demasiada para os dedos deste triste e melancólico escritor compreender.


Certa época um homem existiu, o qual era feito de escuridão. A cor de seus olhos era representada pela tristeza. O som de sua voz, um grito rouco no silêncio da noite. Em seus dedos ele carregava o peso da vida, tudo o que tocava virava pó e se esvaia com o vento.

Ele então estava só. Seus dias eram regados em pranto, desespero e indiferença. Sempre sentado sob a poltrona marrom em frente á sacada, encarando o horizonte com pesar. Nada mais o havia restado, a essência de sua vida já não mais compartilhava moradia consigo. Ele estava morto. Seu corpo orgânico, uma casca, apenas sobrevivia cheia de ar. Não mais vida.

Nem mesmo a xícara do café negro e forte que sempre o acompanhava ao nascer do sol, se era capaz de superar a amargura em sua boca. Nem mesmo podia sentir o gosto do doce, tudo se tornando amargo, azedo.

Esse homem dava-se como próprio nome; Ninguém.

Vivia em Lugar Nenhum, perambulava pelas ruelas gélidas entre delinquentes e viciados, misturando-se com a noite e fazendo parte das sombras. A rua da solidão era seu endereço, esquina com a dor. Ninguém, não existia.

Certo dia, uma visita para si apareceu. O que se era de assustar, visto que nada o visitava em sua pós-morte.

Um anjo sentou-se em sua sacada. O ser celestial o encarava interruptamente, a vida parecendo escorrer para fora de seu olhos claros e materializar-se ali em frente. Suas vestes eram claras, absurdamente em contraste com as escuras de Ninguém. Suas asas, belas e douradas como o sol. Reluziam em seu esplendor e trazia luz para toda aquela escuridão.

E então, o anjo entrou. Atravessou a muralha invisível da sacada, um sorriso majestoso resplandecendo em seus lábios carmesim. Suas mãos delicadas erguiam-se ao ar, tentando ao menos tocar a face gélida de Ninguém.

O homem se apavorou. O desespero correndo livre por seus olhos alarmados, inclinando seu corpo para trás o máximo que pôde. Mas não se fora de total serventia, pois o raio de intensidade o atingiu e correu com eletricidade por todas as suas entranhas, destruindo-o, entorpecendo-o. O anjo havia tocado sua epiderme.

Certa vez, sentiu paz o homem. A tristeza se espalhou e correu por todos os lados, sendo sugada para o vácuo e dando lugar para a felicidade. As ondas quebravam calmas dentro de si, a maresia sonolenta. Ele estava sereno.

O anjo sorriu-lhe mais uma vez, seu toque descendo até pressionar o seu peito. Ele adentrou também. O anjo derramou ali, a vida que corria em rios pelo seu corpo. E o líquido penetrou seus poros, deslizando envolta de seu coração negro e tornando-o escarlate; pulsante.

Aquele ser celestial embrenhou-se em sua vida como uma serpente albina, enrolando-se em seu pescoço e sendo aquele único o capaz de controlar sua vida ou morte. Agora ele sentia o toque do anjo por todo o seu ser, a luminosidade de suas asas tornando-se o seu próprio sol.

O homem nunca de fato teve a mania de acordar com uma xícara diária de chá, sempre fora amante árduo do café puro e forte. Porém, há um tempo atrás quando o anjo mais belo que pôde por os olhos o visitou, mostrou-lhe a doçura dos chás.

Fora estabelecida uma rotina; assim que seus olhos abriam pela manhã, preparava uma quente xícara de chá para o anjo que, prontamente, lançava-lhe um sorriso que assemelhava-se à estrela solar e sentava-se com ele na sacada.

E então, Ninguém o tomou como essência de sua vida.


Certo momento, o possuiu o homem. O anjo escolheu deitar-se com ele, entregou sua luz para transpor o corpo de Ninguém. E então o homem pôs suas mãos em si. Despiu-o da vergonha, domou seus lábios e curvou seu corpo.

E o anjo se abriu para ele. Mostrou-o o amor. Fizeram esse amor acontecer, como uma pequena faísca que incendiou seus corpos de tal forma que tudo ao seu redor se reduziu á cinzas. O calor se tornou intenso, suas vidas unindo-se em uma só.

Porém, tudo aquilo se era puro. A luxúria rasgava seus corpos de forma límpida, sincera. Os amantes cedendo suas vidas um ao outro no mais íntimo de seus contatos, partilhando da doce violência entre seus corpos.

E a casca, encheu-se novamente. Ninguém agora, era feito de amor.

Certa noite, chorou o homem. O anjo o havia deixado. Ninguém havia sugado toda a essência vital para fora do anjo, causando-o dor e o apresentando á amargura. E o anjo precisava recuperar sua vida novamente, então ele partiu.

Hoje, seus olhos já não abriam pela manhã, pois passavam a noite alertas, em claro. O anjo já não mais o visitava, fazendo Ninguém ter de tomar, sentindo o gosto da amargura em seu palato, todas as xícaras de chá que permanecia a fazer, à espera de que um dia o anjo voltasse a o alegrar na escuridão ao seu redor.

Mas ele o havia feito ir embora. A partir do momento em que o tocou, começou a reduzir o ser celestial ao pó, como sempre fizera. E agora, a serpente pressionava sua garganta e matava-o novamente dia após dia.

E ele se tornou o vazio. A tristeza tinha sido sugada para longe, sua felicidade tomando o mesmo rumo. E como poderia Ninguém viver, se tudo aquilo que preenchia seu ser de vida havia ido para longe de si?

Seus olhos renderam-se à inexistência. E Ninguém voltou a deixar de existir.



"Certa vez, um anjo me visitou.
Ele então me amou
E a felicidade me mostrou.

Mas como eu não mais existia,
Arranquei a essência que nele vivia
E o fiz perceber que já não valia
O preço de uma vida que esvaia.

Ele me beijou.
E me deixou.
Para recuperar a vida que meu ser o tirou."

Vil e imperfeito pecador.

O AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora