Ana, a moça triste na janela, suspirava tão sozinha, olhando para além, muito além, um céu baço, quase cor-de-rosa ao fim da tarde. De vez em quando, ela murmurava alguma palavra e podia constatar que também suas palavras eram pálidas como o outono.
Do outro lado da praça, o vento farfalhava nos galhos de uma árvore qualquer. Talvez não fosse nem árvore, já que qualquer árvore sempre tem qualquer coisa de árvore: esta já não tinha folhas, nem flor, nem fruto e o tronco, nem tronco, era como um mastro seco, sem seiva, sem cor e sem tom.
Alguém se aproveitara: tinha lá uma placa branca fincada com um prego, com letras negras e uma tosca mensagem – tortuosa, incerta, na forma e no conceito. Três ou quatro meninos corriam e brincavam em torno dela. Enquanto lá no alto do prédio, dois olhos miravam perdidos a alba que se perdia, opacos e tristes, seguravam lágrimas amargas.
Um movimento – Não! – Um tremor nos lábios, um calafrio por medo ou por saudade, pelo fim de tudo...talvez. Algo oprimido exigindo uma palavra, mas a palavra não ganhava voz, fugia diante dos mínimos ruídos da cidade e mesmo do rumor das estrelas.
"Eu primeiro!" – gritou um menino lá fora. Eu...primeiro? Não! – suspirou a moça. Com efeito, ela não se sentia a primeira e talvez nem a última. Ana não julgava existir naquele momento. Ninguém ao longe esperava por ela, ninguém a conhecia realmente no recôndito de seus sonhos e aspirações. A vida toda nenhum olhar a fitara com um certo brilho que só ela poderia decifrar. Ela mesma jamais o conheceu, como se uma bruma densa turvasse o seu olhar.
A verdade era que nem mesmo fora capaz de enxergar o mundo totalmente, mas via dele apenas a fria parte que lhe era dada, um pouco sem brilho, desprovida da nuança mais raras das cores. Agora era o outono, não havia flores ao seu redor, apenas uma sebe de edifícios esguios e altos, que nem conseguia ver o tom do céu do outro lado. Ana olhava tudo entediada. Cerrava os olhos opacos e tentava esquecer dos tons cinzas e se lembrar, mas a lembrança que veio a superfície do pensamento lhe parecia tão amarga que nem lembrar ela queria mais.
Junto à árvore do outro lado da praça – aquela mesma em que havia uma placa pendurada, – um jovem casal se recostou num eterno abraço, beijando-se como depois de um primeiro beijo. Eles sorriam e mentiam um para o outro, jurando o para sempre.
"Quem há de mentir para mim?" – perguntou-se Ana. "Em que dia recostar-me-ei àquela árvore desfigurada, com os lábios de rapaz colados aos meus e direi para sempre e ele me dirá para sempre? Por fim, dar-lhe-ia adeus depois de uma discussão, o culparia por tudo e não se sentiria mais culpada de ter mentido tanto numa tarde de outono". Jamais voltaria a dizer a verdade. Jamais!
Súbito, ouviu lá de baixo o som de passos. Corriam mas não de pressa e não lentos, pareciam-se mais como espasmos de um bêbado que não sabia decero aonde ia, pisando sempre hesitante, dando giros cômicos com o corpo e voltando ao ponto que partiu. Era alguém que fugia, pensou.
Ana ouviu, girou os olhos e se sentiu tonta. Procurava-o, mas o desconhecido se escondeu sob a sacada do prédio, fora do alcance de seus olhos. Deslizava para cá e para lá, até que o surpreendeu um rapaz, forte e alto como colosso.
Ana pode ouvir novamente o toque-toque do passo ainda mais apertado, tenso, corrido. Até que saiu do escondido para o meio da praça, na direção do casal, um rapazola bem mirrado, ao perceber que outro inimigo veio se juntar ao grandalhão.
Ana assistia à cena entediada, mas com certa pena. O mundo era meio injusto. Onde será que estariam aqueles que promoviam a justiça? Por todos os lados, só via o fingimento das pessoas. E ela também não queria nada além de mentir como os outros, não viver se escondendo pelos cantos como o rapaz fugindo, que tropeçava, que corria, temendo tudo em vão. Quem tinha a coragem de fugir, depois de tanto fugir, acabava sempre como aquele garoto lá fora, como ela...
A esse pensamento, ela escondeu o rosto dentro das mãos. Compartilhava a dor dele, ouvindo seus gritos. O homem era naturalmente cruel. Por que faziam aquilo? Ela olhou mais uma vez pela janela e o rapaz estava caído.
O casal que pouco tempo atrás estivera junto da árvore trocando palavras, juras e beijos, deixara-se contagiar pela violência e batiam as palmas das mãos incitando a fúria dos agressores. Sorriam satisfeitos.
Os meninos naquele instante pararam de brincar e correr e já sonhavam semelhante futuro heroico para si. Um dia, fariam justiça da mesma maneira e coitados dos malvados!
Filipe soergueu-se. Sentia-se ferido profundamente, mais que na carne cheia de escoriações e machucados, nalgum ponto da alma. Sua dor, a de quem caiu na terra e sofreu a injustiça.
Na verdade, não queria mais ter que erguer a cabeça, mas o sangue escorria sobre seus olhos embaçando a visão. Olhou com a dor mais furiosa.
Ana, de cima, o fitou algo enternecida, como só as mulheres são capazes de se condoer de um derrotado. Como era triste todo o mundo!
Ele sacudiu o pó das roupas, magoando todas as chagas. Sentia a tepidez do fio de sangue que manava do alto da fronte e corria ao longo da face. Então olhou para cima, para o prédio, para as janelas mais altas. E lá, nos andares mais próximos ao céu, vi um rosto de menina choroso, pequeno.
Mas não havia como ele não perceber que ela ruborizava à sondagem de seus olhos.
Eram olhos quentes, sentia na pele da face a moça triste da janela. Uma lua e um milhão de estrelas já corriam no céu, corriam também ao redor dos olhos de Filipe, como se ele os refletisse. Não! Ele não era belo, pensou a moça triste; era espantoso, magnífico, como o reparar em algo nunca antes visto.
Por um pequeno instante, ambos se entreolharam tristes, humilhados e ele acenou para o alto. Ela, então, cerrou a janela num gesto brusco com medo de que Filipe entrasse em seu quarto ou em seu pensamento e viesse pedir conta do mais profundo de seu coração.
"Jamais lhe direi a verdade!" – disse ela se escondendo debaixo do cobertor. "Jamais lhe direi a verdade! Ó meu Deus!"
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Anátema:
Short StoryAnátema: palavra com um sentido ambíguo. Primeiramente se referia a algo que por ser elevado e digno era ofertado aos deuses, mas depois se tornou sinônimo de maldição.