O Chamado da Musa

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O jardim da inspiração pode ser escuro e distorcido

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O jardim da inspiração pode ser escuro e distorcido.

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Encarei as pinturas no ateliê.

De um lado, os quadros finalizados. Do outro, fileiras de esboços incompletos, a maioria abrangendo tentativas de uma mesma imagem em estilos diferentes.

No final das contas, eu gostava de todas as telas que produzia. Mesmo as falhas e os experimentos abandonados eu considerava razoáveis. Tinha a sorte de não ser o tipo de artista que sempre acha o próprio trabalho um lixo, nem do tipo propenso a ataques dramáticos, que rasga as obras e joga tinta para todos os lados.

Uma mesa baixa no fundo da sala continha uma pilha de livros de arte. Livros caros, com páginas de papel couchê matte recheadas de análises sobre os grandes mestres e suas obras. Estudei todos esses livros com afinco, passando os dedos sobre as fotos, como se fosse possível absorver por osmose o mistério do talento responsável por elas.

Com tempo e paciência, entender o método não era difícil.

O problema é que, mesmo sabendo como fazer, a minha arte era "muda".

Minhas pinturas eram do tipo que as pessoas viam, elogiavam... e esqueciam. Eu tinha a técnica, mas não tinha uma voz. Trocaria uma pelo outra de bom grado — o ajeitado insosso pelo torto com personalidade.

O conceito bruto de "talento" me irritava. A ideia de que se nasce com aptidão inata para alguma atividade, e coitado de quem não tem sorte no resultado da roleta. Todo mundo que eu conhecia falava de talento como um elemento genético, predestinado... o que implicava não haver quantidade de treino e esforço que fosse capaz de alterar essa qualificação obscura.

Eu fazia umas panquecas ótimas. Seria esse o meu talento? Será que eu tinha que abandonar a pintura e ir cozinhar? "Por decreto divino, você não tem talento para ser pintor. Seu destino está nas panquecas."

Tirei o celular do bolso para conferir as notificações do Instagram. Na última hora, onze curtidas a mais na foto mais recente. Aproveitei o contentamento momentâneo que aquelas curtidas proporcionavam, feito um náufrago bebendo água de chuva recolhida na casca de um coco.

As fotos dos quadros formavam um diagrama atraente na minha conta do site — quadrados de tamanho igual, organizados milimetricamente. Os últimos quadros que eu havia postado eram todos de uma série com tema de fantasia. Seres celestiais alados, habitantes de florestas multicoloridas.

Eu ainda estava na dúvida se devia postar o quadro do unicórnio. Apesar da pintura ter ficado satisfatória, também tinha ficado sóbria em excesso. O unicórnio daquele quadro estava se levando a sério demais. Havia algo inerentemente cafona na figura do unicórnio. Era como se fosse necessário que a própria imagem tivesse consciência do ridículo.

Será que era isso que estava me faltando? Consciência do ridículo? Olhei mais uma vez para todas as pinturas no ateliê, uma a uma. Daquela vez, o fato de eu me referir àquele quartinho como "ateliê" me deixou abatido. Tratava-se de um quartinho em desuso no apartamento, que eu pouco a pouco fui transformando em depósito de tintas e quadros.

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