Vida que Passa

650 7 3
                                    

Sábado de manhã. Quase onze e quarenta, hora costumeira de sair para o almoço. “Mas quem vai trabalhar no sábado de manhã, no Centro”, sua mulher lhe perguntou. Nem respondeu. Virou-lhe as costas, e já estava trancando a porta, quando seu filho pequeno começou a esmurrá-la por dentro, gritando: “Papai, papai”! Ele abriu a porta e o pequeno estendeu os braços para o alto. Abaixou-se, abraçou-o e disse alguma coisa que fez o menininho balançar a cabeça positivamente.

O escritório estava vazio. Lógico. Lembrou-se da fala da mulher que, enciumada, pensava que ele fosse se encontrar com alguma amante. “Ligue para o telefone da minha mesa”, respondeu ele. E reviu mais uma vez a cena da saída do lar.

Somente o som das teclas do computador se opunham ao ruído monótono do condicionador de ar. Não tinha curso de datilografia, mas digitava tão rápido quanto seus erros lhe permitiam. E tentava corrigi‑los, sempre que os notava.

Detestava trabalhar aos sábados, até porque nunca tinha entendido direito aquela política de banco de horas. E com o condicionador de ar somente na ventilação, sem refrigerar nada, revoltava‑se mais ainda contra aquela situação.

Mas o que fazer? Cumprir prazos, fazer relatórios, apresentações. Tinham ligado no dia anterior, dizendo que precisavam de várias alterações nas apresentações e nos documentos que havia gerado. Claro, tudo para segunda-feira, de manhã. Não, não era possível estender o prazo. A conta é muito importante. E ele, claro, era o único especialista da área.

Foi aí que aconteceu. Tudo escureceu, e não fosse a hora e a luz solar, teria ficado no escuro. Acabou-se a energia. A tela se apagou. Um grito de raiva contendo dois palavrões rasgou o ar. Por sorte, perderia apenas parte do trabalho, pois tinha o costume de utilizar o recurso de salvamento automático. E, por sorte também, não havia ninguém mais ali.

Levantou-se e foi à janela, olhar se mais alguém tinha o mesmo problema. Viu alguma coisa grande passar rápido, mas não a divisou bem: parecia-se com um enorme pano de prato. Não percebeu a forma. “Se não sei o que é, como pode ser um pano de pr...”. Um enorme estrondo o interrompeu e assustou. Em seguida, o inconfundível ruído de uma sirene de alarme de carro. O alvoroço vinha da rua, lá de baixo. Abriu a janela, procurando ver o que era.

Lá embaixo, um corpo inerte jazia sobre um carro. O capô completamente amassado pelo choque, e o cadáver numa posição que se assemelhava a uma marionete displicentemente jogada no chão. Os faróis e setas piscando furiosamente, igualando-se ao ritmo da sirene do alarme.

Começou a juntar gente. Esquisito que o som do alarme estivesse tão alto, se o andar em que ele estava não era baixo. Estranho também era o fato de ouvir o que as pessoas falavam, de tão longe, e com a sirene tão alta. No entanto, não entendia o que falavam.

Olhou o relógio. Onze e quarenta e três. Resolveu descer para almoçar, e daria uma olhada no pobre homem. Suicídio era, para ele, um ato de muita covardia, ou muita coragem. Acreditava na vida após a morte, e que suicídio era ir contra a lei de preservação.

A maldita porta que dava para o hall dos elevadores não queria abrir. Não podia ser a trava eletromagnética: não tinha energia! “Um pé de cabra viria bem a calhar”, pensou.

Passou da porta de entrada do prédio, e uma pequena multidão já se formava em torno do acidente. Não se via mais o carro. Uma ambulância dos bombeiros acabava de chegar, e o trânsito parou na estreita rua. Os enfermeiros saltaram e se dirigiram ao homem; examinaram-no, concluindo pelo óbito.

Não conseguiu ver o pobre-diabo. Muita gente, e ele odiava aglomerações. Parou em frente à porta do restaurante, sentindo-se confuso. Deu de ombros, e já ia entrar, quando ouviu alguém atrás de si:

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 27, 2014 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Vida que PassaOnde histórias criam vida. Descubra agora