O Fraticida

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Aquele pesadelo era na água. Já fazia muito tempo que não sonhava mais. Ele ficava bem acordado, presenciando e sentindo um horror que ele não esqueceria quando acordasse. O mundo todo era feito de água, até o alto do firmamento, mas nem por isso ele adquirira o poder de respirar submerso. Era simplesmente um mundo inteiro de afogados, agonizando à deriva onde quer que as correntes assassinas do ar oceânico os carregasse.

Abriu os olhos lentamente. Não se assustava mais também. Aproveitou para respirar fundo e sentir o cheiro de vida. Ainda que fosse uma vida deprimente. A armadura estava fria sobre a pele, e a noite ainda estava profunda e majestosa, com uma miríade no céu e uma lua gigante. Ele odiava a lua. Se levantou, desencostando da árvore que usara como cama, apesar de vertical e mais dura que o solo de terra úmida de orvalho. Tirou a metade que estava enterrada na terra ao lado, e posicionou a espada imensa nas costas. Um gato-das-montanhas fugiu quando viu a cena, e a presença imensa de Gutts acordou a floresta num raio de um quilômetro.

O dia chegaria em três horas, mas não importava para ele. Não tinha motivos para parar, nem tampouco pra seguir. Se sentia sono, não precisava de mais que quatro horas em qualquer superfície que acomodasse seu corpo para depois seguir a jornada. Agora procuraria comida, depois alguma estalagem para beber vinho e afiar a espada enquanto procurava informações sobre os apóstolos.

Também estava cansado daquilo. Daquela busca incessante, aquele esforço cada vez maior de mudar seu destino. Algo mais e mais distante, uma esperança gradualmente se apagando, como uma vela moribunda no mirante de um faról marítimo. Ele se sentia perdido no mar de incertezas.

Encontrou um cervo há cem metros dali. Sabia procurar pelo cheiro, o som que fazia nos galhos e folhas mesmo que quebrados bem longe dele. O medo fizera aguçar cada vez mais os sentidos, lhe tirou a sensibilidade emocional, mas fez sua pele tão sensível quanto a de qualquer presa fraca na floresta. Contudo, Gutts era qualquer coisa menos fraco.

Levantou a espada gigante das costas, pegando pelo cabo como se fosse um graveto de ferro. Arrastou-a centímetros acima do solo ao seu lado, sincronizando seus passos com a de seu alvo, respirando ao mesmo tempo, tentando copiar até os possíveis pensamentos do cervo. Quando se deu por si, o animal estava flanqueado por uma sombra imensa, com os olhos como dois globos vermelhos de sangue e voracidade. Ele nem tentou fugir, a espada voou de lado quebrando o seu pescoço na mesma hora.

A fogueira estalou e ele mordeu a carne suculenta, babando todo o líquido que vazava da carne. Ao menos alimentação ele era competente em fornecer a si mesmo. Algumas centenas de metros dali, escutou um trotar de cavalos, aos poucos o som se intensificou até perceber a passagem de uma comitiva inteira. Apagou a fogueira e se prostrou perto de algum arbusto, roendo um osso do cervo. Eram pelo menos quatro cavaleiros, com armaduras ornamentadas e uma diligência sendo carregada atrás. Conversavam bastante, e ele pôde ouvir um pouco.

"Não é assim que as coisas acontecem, você tem que limpar a gôndola por dentro primeiro".

"Para de falar merda, é por fora, com óleo de linhaça. Você não sabe de nada, Balgor."

"Vocês dois deviam parar de ser idiotas. Acha que só porque somos quatro, ninguém vai querer nos atacar? Poderiam tentar chamar menos atenção."

"Falta horas pra amanhecer ainda Velnim."

"Não interessa, eu sou sou o capitão e vocês vão falar mais baixo ou calar a boca."

A conversa se estendeu entrecortando-se por mais alguns metros até a trupe desaparecer. Eram claramente cavaleiros do reino, usavam armaduras semelhantes e estavam organizados hierarquicamente. Se eram homens do império, deviam estar indo para algum lugar com informações pertinentes para Gutts. Decidiu segui-los. Ao que parecia, eram idiotas demais para percebê-lo, e em qualquer caso tinha uma espada do tamanho de uma pessoa para cobri-lo, como sempre fora.

O FraticidaWhere stories live. Discover now