Conversas indistintas soavam ao fundo. Ao longe, em segundo plano, grandiosas cortinas vermelhas desfocadas compunham o cenário. À sua frente, do outro lado da mesa, detrás das chamas das velas, Marcelo concentrava-se em seu prato. Garfada após garfada, parecia apressado, nervoso. O macarrão na manteiga era o mesmo de a exatos cinco anos atrás, quando ele, no mesmo restaurante, formalizou o namoro com Camila. Ela não havia tocado em seu prato. Os movimentos de Marcelo pareciam seguir o ritmo de Tchaikovsky, que tocava em som ambiente, e isso a distraía. Camila voltou a si quando seu coração disparou. Ela não estava preparada para o que havia imaginado.
Essa era a segunda vez que o casal jantava naquele restaurante. Era caro, é verdade, mas o dinheiro não os impedia. Marcelo não se considerava apto para encontros formais e negou vinte ou vinte e cinco vezes todos os convites que Camila o fizera para voltar ao local onde o namoro teve início. Além disso, a sobremesa que havia pedido, apesar do cardápio dizer o contrário, continha leite, o que o fez passar mal a noite inteira. Ele escondeu o ocorrido de Camila por muitos anos.
O fato de Marcelo odiar ternos, sapatos e comidas de adulto era um dos poucos defeitos que ela podia se queixar com suas amigas nas noites de terça-feira. Tais comentários saíam de sua boca mais por vontade de participar da conversa do que por considerar uma falha de caráter de seu amante. Ela, na verdade e em seu íntimo, divertia-se com isso.
O outro defeito, esse sim capaz de despertar em Camila um sentimento latente de revolta, era o desprezo pelo símbolos do romantismo, devido, como ele argumentava, a um esquecimento contumaz. O presente de Dia dos Namorados era entregue dias ou uma semana depois da data, dia em que ele se lembrava de ir às lojas. No primeiro ano, todos os meses de namoro passaram em branco. E nos aniversários dela, o Facebook o salvava.
Com dois meses de antecedência, ela escolhia, planejava e organizava a viagem para a Europa, onde comemorariam mais um ano de relacionamento. Em todas as vezes saíam às pressas de casa, porque Marcelo se esquecia de fazer as malas, tarefa à qual não dedicava mais do que quinze minutos. Regatas para ir ao Canadá e moletons para ir ao Egito revelavam o quanto ele se importava com o destino das viagens.
Nas noites de terça-feira, o sono de Camila era mais leve. Comparado com os namorados das suas amigas, Marcelo poderia ser considerado um Mahatma Gandhi de cabelos lisos, dentes perfeitos e com problema de memória. Traições, violência, mentiras, egoísmo, tudo isso era inimaginável para a personalidade ingênua de Marcelo. Ele era um ser de luz que a guiava para fora do túnel repugnante e barulhento que era a sua casa.
Camila vivia em um apartamento de luxo, numa região distante do centro da cidade, com seus pais e sua avó paterna. Entre lustres e peças de porcelana, a pintura Os comedores de batata, de Van Gogh, numa das paredes da sala, contrastava com a decoração do ambiente. O quadro servia como uma recordação da origem humilde de sua família e era onde Camila fixava seu olhar quando seus pais discutiam horas a fio por causa do trabalho ou de sua avó, que fingia dores, segundo eles, quando estava carente de atenção. Em algumas situações, as reações da avó soavam exageradas até mesmo para Camila. Gritos, ofensas e gemidos falsos eram a trilha sonora em seu apartamento.
Marcelo estava empenhado em seu macarrão, já havia devorado mais da metade. O som do garfo colidindo com o prato fez Camila se lembrar das violentas gotas de tempestade que tamborilavam a lataria do carro de Marcelo no dia em que ele recebeu um telefonema dela para levar sua avó ao hospital, depois de todos os parentes próximos terem recusado o socorro. Aterrorizado pelos gritos de dor, ele atravessou a cidade em menos de quinze minutos para descobrir que a velha estava com gases.
Camila deixou escapar uma meia risada, o que fez Marcelo levantar a cabeça para ela.
-- Você não vai comer? -- perguntou ele, terminando de engolir.
Ela respondeu com um sorriso discreto. Era a primeira vez em cinco anos que ele tomava a iniciativa em chamá-la para sair. Por que logo no restaurante em que começaram a namorar, em que ela sempre quis voltar e ele sempre recusou? Estava mais do que evidente que Marcelo finalmente cedera às pressões da mãe para que ele se casasse. Já era tempo, já havia passado, na verdade. Ansiedade e Camila eram uma só. Ela então resolveu comer.
Marcelo contava mais uma história de um cachorro com a pata quebrada que ele teve que acudir em sua clínica veterinária, quando Camila, que ouvia de relance algumas palavras, finalmente depositou os talheres na mesa, depois de terminar o seu jantar. Como ele faria o pedido, era só o que passava na cabeça dela. O que estava para acontecer ela já havia imaginado inúmeras vezes. Marcelo era o único e possível homem de sua vida.
Alguns instantes depois, um garçom sorridente se aproximou, trazendo duas taças de champanhe. Um clichê? Ela olhou para dentro das taças. Havia uma aliança em uma delas.
Sim, um clichê, mas era um pedido que exigia um mínimo produção e dedicação. Camila não esperaria algo assim de um rapaz distraído como Marcelo. Ansiedade deu lugar à felicidade. Ela não conseguia parar de sorrir. A felicidade dividia espaço com o nervosismo. Ela ajeitou-se na cadeira e concentrou-se. Queria recordar de todos os detalhes daquele momento único.
Marcelo, então, olhando no fundo dos olhos dela, ergueu a taça, brindou e bebeu. Bebeu, bebeu e a aliança escorregou para dentro de sua boca. Engasgou-se. Camila gargalhou. Mais uma de suas piadas. Marcelo perdia o fôlego, os olhos arregalaram-se. Era o dia mais feliz na vida de Camila. Marcelo deu um tapa na mesa, em desespero. O garçom voltou correndo e esmurrou as costas do rapaz de rosto vermelho. Ele cuspiu a aliança aliviado e lançou um olhar inquisidor para o garçom. Camila parou de rir. Foi a vez do garçom ficar com o rosto vermelho. Com movimentos rápidos, ele pegou a aliança, secou-a com um papel guardanapo, colocou no dedo e se retirou pedindo desculpas repetidas vezes.
Depois desse episódio, o casal de namorados tomou a decisão mais acertada em sua existência: frequentar outro restaurante.
YOU ARE READING
A escolha certa
Short StoryPela primeira vez, depois de cinco anos de namoro, Marcelo chamou Camila para sair. E isso significava que este seria um dia inesquecível.