Blame chegou ao seu andar já desabotoando a camisa. O tecido encharcado de suor se fazia como um traje de natação em seu corpo. Caminhava com um pisar enrolado, tropeçando em cordas invisíveis pelo corredor; ainda assim, conseguiu achar o molho de chaves.
Colocou sua pasta de lado ao chegar a porta de seu apartamento, buscou a chave que abriria a fechadura. Deparou-se com o pingente que pendia do objeto, balançando, com aquela maldita frase nele exposta.
"We are one", o item dizia.
Observou-o bem, como quem vislumbra uma foto velha, de infância, ponderando por alguns instantes. Com força, o apertou. Por qual motivo guardava aquilo? Por qual motivo ainda se perguntava afinal, se sabia bem qual era a resposta?
Encontrou a chave correta e entrou.
– Lá vai ele. Lá vai ele! Driblou o goleiro, ajeitou, chutou... NA TRAVE! Que desperdício...
O susto o pegou de tão repentino modo que tropeçou no tapete e quase caiu. Voltou-se logo para a TV. "Ah... que bosta!". Por quantas horas o aparelho estivera ligado? Devia ter checado antes de sair.
Havia meses que andava severamente distraído.
Deixou as chaves na mesa ao centro. Foi até o interruptor e ligou as luzes. Pegou o controle da TV e a desligou. Retirou os calçados e chutou-os para longe, terminou de desabotoar a camisa e a jogou no chão mesmo, displicente.
Não tinha comido muito desde que deixara sua residência, de manhãzinha, então, se não assassinasse a fome, a fome é quem o assassinaria. Seguiu para a cozinha.
Passou pelo fogão quase derrubando as panelas.
Aproveitou para espiá-las. Não continham comida de fato, apenas moscas obesas e larvas brancas e gorduchas, que saíam de um pedaço de carne que provavelmente esquecera de cozer.
Rumou para a geladeira e abriu com avidez sua porta.
Além de garrafas d'água e verduras podres, fedorentas, uma embalagem de empanados congelados foi tudo que vira. Pegou-a e informou-se da validade.
O produto estava vencido.
Deveria ter feito compras. Realmente andava muito esquecido.
Sua cabeça correu, em seguida, para o agrupamento de pequenos armários no canto direito. Talvez estes poderiam ter o caminho para encontrar comida. Antes de qualquer contato manual, porém, desistiu da ideia. Viu algo se mexer nas superfícies de vidro das portas. Afastou-se acelerado, batendo com a bunda no fogão e quase derrubando tudo.
Era tarde demais para pedir alguma coisa pelo telefone...
– Aos empanados, então.
Pegou um prato da pia – o mais ou menos limpo de uma pilha repugnantemente suja. Escutou um singelo chiado vindo do monte. Investigou. Um rato! O maldito bichinho saiu correndo dos restos de lasanha e subiu pelo seu braço. Blame saltou para trás, acabou derrubando uma jarra. A peça espatifou-se no chão, se transformando em incontáveis cacos que por pouco não o penetraram.
– DROGA, DROGA, DROGA! Mas que... – Para Blame, começava a parecer certa a ideia de que muita coisa ainda podia piorar naquele dia.
Depositou o prato na mesa. Procurou pela pá, pela vassoura. Ainda não tinha percebido que não usava utensílios de limpeza há mais de dois meses. Mirou um tanto mais longe, perto do banheiro, onde o cômodo estreito e escuro que tanto evitava, sem nada que o permitisse ser fechado, o chamava. Seguiu até lá esgueirando-se pela parede como quem de algum mortal perigo se esconde. No lado de dentro, onde deveriam estar os itens dos quais necessitava, a escuridão o atraía... e o repelia.
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O Demônio no Escuro.
Short StoryExistem lugares no mundo em que praticamente nenhum ser humano ousa ir. Existem lugares sujos, escuros, poluídos, profundos e perigosos. Esses cantos sórdidos da vida, os quais, ao menos alguma vez, todos são obrigados a adentrar, podem estar mais p...