Era a garota mais triste de toda cidade.
Levava um girassol na mão esquerda em uma quinta-feira de janeiro. Perguntava-se quando um Trem a tinha atropelado e de que forma havia sobrevivido. Aquilo não lhe parecia justo, nada no mundo lhe parecia justo, nem mesmo a forma como as folhas saltavam das árvores e tocavam o chão lhe parecia justo. Depois de meses, andava novamente em direção ao baixo centro de bh. A Avenida João Pinheiro nunca antes havia lhe parecido tão extensa. Talvez fosse porque estivesse fazendo o caminho em plena luz do dia, diferente das vezes em que voltava da Praça da Liberdade completamente alcoolizada, voando como um pássaro e gritando músicas que ainda não existiam. "Liberdade". O que isso ao menos significava? De qualquer forma, a rua cheia de carros e fumaça de canos de descarga a incomodava significativamente. Preferia o frio da noite. Exceto o da que descera a avenida apressada e aos prantos, tendo dificuldade para enxergar o caminho, não porque estava meio tonta, mas porque continuava esfregando os olhos na tentativa de afastar o que parecia ser litros de lágrimas. Preferia o frio como o da noite anterior a essa última, preferia a vez em que tinha companhia. Podia ouvir as risadas de novo. Os olhares. A mão que segurou. A conversa espalhafatosa e divertida.
"Meu deus, estou tão fodida, minha mãe vai comer meu fígado quando eu chegar em casa".
"Miga, seu fígado já deixou de prestar há muito tempo".
Mais risadas.
Podia realmente chamar aquelas pessoas de amigos? Seria espantoso se não pudesse, porque juntos e bêbados, era como se nada fosse capaz de atingi-los. Agora que olhava de longe para aquelas memórias, tudo parecia ridiculamente frágil. A medida em que seus passos formavam o caminho, sua mente recriava as histórias já vividas naquelas mesmas esquinas. Era por isso que Ana estava constantemente bêbada, porque preferia aquelas histórias ao peso maciço da vida real; ela odiava a vida real. Na frente de qualquer garrafa de destilado, podia assumir a personalidade que quisesse, ela podia ser, finalmente, os olhos narrados no poema de alguém, como naquela outra vez em que uma amiga fizera questão de recitar um poema de mesmo nome que o seu. Ana havia memorizado um dos versos, No traço da minha caneta você é o infinito que eu escrevia quando acabou a tinta. Repetiu algumas vezes como se fosse o refrão de uma música. No traço da minha caneta você é o infinito que eu escrevia quando acabou a tinta. No traço da minha caneta você é o infinito que eu escrevia quando acabou a tinta. No traço da minha caneta. Infinito. Acabou a tinta. Acabou. Acabou. A vida era realmente uma coisa engraçada, mas ela não riu. Ao invés disso, seguiu andando com pés familiarizados ao caminho e dobrou uma esquerda.
Não sabia que estava indo para aquele prédio, até que se viu subindo as escadas. Naquela tarde, sentia que em seus vinte anos de vida havia acumulado o cansaço das paredes centenárias sustentando o edifício. O Castelinho da Bahia se erguia sobre sua cabeça como se tentasse protege-la. Seus vitrais azuis, vermelhos e roxos refletiam luzes coloridas por onde quer que passasse. Terminados os degraus, olhou para o corrimão, mas o que viu era outra coisa. Parecia estar nostálgica e nesse sentimento encontrou a saudade de Luísa. Saudade de Luísa e seus dedos pequenos, caminhando pelo corrimão, eufóricos. Um instante a paralisou, não tinha certeza se queria continuar, mas antes que percebesse, entrou no salão, passando pelos mesmos lugares por onde ela e Luísa haviam andado uma vez.
"Dança pra mim", Luísa sorrira.
"Eu não vou dançar pra você".
"Só uma rodadinha".
A saudade fez cócegas em seu pescoço. A garota mais triste de toda cidade sorriu.
"Eu te amo".
Depois da promessa, as duas se apressaram em direção aos corredores laterais. Luísa segurava a mão de Ana, enquanto deslizavam por entre cortinas grossas, descobrindo portas.
"Não deveríamos estar aqui".
"Não deveríamos estar apaixonadas".
Então o beijo. Ela quase podia senti-lo novamente. O beijo. Lento e firme, seguro, demorando-se em cada fôlego, como se quisesse ficar ali para sempre.
"Eu também te amo".
Onde estaria Luísa agora? Porque Ana a havia procurado atrás de cada porta, debaixo de cada cobertor, por entre as fotografias, nos fundos das garrafas, no alto das árvores, nas flores do jardim da casa de grade azul, nos maços de cigarro, por entre as páginas dos livros dos Sebos do Maletta, na linha de trem que termina (ou começa) no Eldorado, dentro da caixinha de música que não toca e guarda anéis de coco, na Pista do Barreiro, em cada assento do 313M Terminal Ibirité e até mesmo nos bolsos de sua jaqueta. Procurou-a de todos os jeitos e sempre que não encontrava, algo em seu peito doía um pouco mais. Onde estaria Luísa agora? Em qualquer lugar longe demais, mesmo que há apenas alguns minutos de distância.
A vida continuava terrivelmente engraçada, e Ana tinha mais certeza de que aquele não era um humor para garotas como ela. Resolveu que iria embora para casa, enfim. Pegaria o metrô e logo tudo aquilo estaria para trás. Refez o caminho das escadas e logo que estava na rua, atravessou-a sem ponderar. Andando, misturou-se à multidão, aos vendedores, à calçada. Não conseguia entender como o presente estava constantemente se convertendo em passado, muito menos como um dos resultados disso era a desintegração das coisas. Sempre de outras coisas, nunca dela mesma. Sentia que habitava um momento em que absolutamente tudo em sua vida era uma espécie de ponto final. Tudo havia acabado, tudo havia passado. Continuou caminhando, o girassol que segurava fazia sua mão suar como quando falara com Luísa pela primeira vez, então Ana se perguntou por que havia comprado aquela flor morta que só lhe trazia memórias meio doloridas. Talvez porque já tivesse se habituado a dor. Se não tivesse sido tão intensa, Luísa ainda estaria ao seu lado? Se não tivesse sido tão explosiva. Se não tivesse feito tantos planos, talvez as coisas fizessem mais sentido. Não há como voltar, repetiu para si mesma. O caminho é sempre em frente. O caminho é sempre em frente?
"Você não deveria implorar pela presença de ninguém. "
Os fatos mais frescos em sua mente não passavam de flashback.
"Não me procure, não olhe pra mim, não apareça, não fale comigo. "
Pensou que todas essas palavras podem ter sido precipitadas. Tentou reconhecer seus erros, mas aquela não era hora de se desculpar. Ana sempre havia sido verdadeira e fiel aos seus sentimentos. Que culpa tinha se podia sentir o mundo inteiro em um pingo de chuva? Seu destino era seu, afinal de contas, precisava estar em paz com isso.
Uma moça que acabara de chegar ao seu lado interrompeu seus pensamentos.
"Será que você poderia me informar as horas? "
Ana rapidamente olhou em seu relógio de pulso.
"São 10:53", respondeu, e enquanto permanecia parada em frente à Praça da Estação Central, esperando o sinal verde para atravessar, sentiu seu corpo estremecer, mas já nem sabia dizer se era devido a tremenda velocidade dos carros fazendo a calçada balançar, ou se ao seu próprio furacão.
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O que faz do horizonte tão belo?
Short StoryTudo dentro desse horizonte é infinito, até mesmo quando acaba. Tudo dentro dessa rua é bonito, até mesmo quando dói. Tudo dentro dessa cidade é casa, até mesmo quando não mora. Só porque é aqui que minha memória habita.