história 1. - minha querida ana

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Luísa estava atrasada, o que significava que nada poderia ter dado mais errado naquela quinta-feira de janeiro. Ela é do tipo que não suporta atrasos, portanto, ter acordado meia hora depois do previsto era uma catástrofe. Havia levantado em um pulo, não tinha tempo para escolher com cautela o que vestir, apenas agarrou a primeira camisa e a primeira calça. Seu compromisso às 11:00 da manhã não podia ser adiado, em uma previsão otimista, ela levaria cerca de uma hora e meia para chegar ao destino. Olhou no relógio apenas para confirmar sua frustração, eram exatos 09 horas e 35 minutos e ela ainda procurava desesperada pelo par de meias. Procurou em todas as gavetas, só conseguia encontrar pares não correspondentes - o que fazia deles não pares, na realidade. Foi até o banheiro descalça, escovou os dentes enquanto tentava pensar em algum sapato que não precisasse de meias, todas as suas sapatilhas estavam inutilizáveis, este foi o momento em que praguejou contra si mesma. Como podia ser uma pessoa e não ter sequer um par de sapatilhas? Teria que voltar para o drama das meias e seu all star surrado. Deu-se um minuto para olhar no espelho. Seu rosto completamente limpo de maquiagem a encarava de volta. Prendeu seus longos cabelos castanhos em um coque bem no alto da cabeça e isso foi toda arrumação que se permitiu fazer, checou sua mochila, certificou-se de que levava dinheiro, cartão e identidade, pegou os três primeiros anéis que encontrou em sua penteadeira, colocou a mochila nas costas e saiu em disparada para a porta. No meio do caminho, precisou voltar. Estava descalça. Abriu a gaveta, pegou duas meias aleatórias que não combinavam e resolveu que elas teriam que servir, terminou de calçar os sapatos e deixou sua casa.

Se o ônibus não demorasse, ela ainda seria capaz de chegar em um horário razoável. Só depois de estar sentada no ponto de ônibus, lembrou-se de checar suas mensagens no celular. Houve um tempo em que essa seria a primeira coisa que faria no dia. Já era rotina, acordar e procurar pelo "bom dia", piscando na tela inicial. Mas, no momento em que vivia, essa era a menor de suas preocupações. Luísa havia gastado tanta energia e tempo ocupando sua cabeça, que mal conseguia pensar em qualquer outra coisa que não fosse trabalho e faculdade. Entretanto, naquela manhã caótica desde os seus primeiros instantes de olhos abertos, ela não poderia evitar de resgatar algumas memórias nem que fizesse toda força do mundo. Foi como se aquelas lembranças cavassem seu caminho por entre sua agenda abarrotada. Enquanto balançava seus pés alternadamente, sentada no banco, seus olhos repararam a meia que vestia seu pé direito. A estampa de abelhinhas coloria o tecido branco, juntamente com potes de mel e flores - pelo menos não são girassóis, ela pensou; Luísa nem fazia ideia de que ainda tinha aquela meia guardada. Aquilo era de Ana. Impossível saber qual a ocasião em que a meia se perdera no meio de suas coisas, pois as oportunidades haviam sido abundantes. As duas estavam sempre juntas. Quando Ana tirava os sapatos e caminhava para cama, ela costumava dizer que estava "desfilando meias superultralegais", "meias para todos os gostos". A memória a pegou de surpresa, e Luísa não sorriu. Na verdade, mesmo atrasada, cogitou voltar para casa e trocar a meia, sentia como se estivesse fazendo algo proibido. Estava usando o que não era seu, estava vestindo algo que pertencia a alguém cuja pessoa quase não existia em sua vida, não se sentia no direito de se apropriar daquilo. Sentiu-se mal, mas seu ônibus apontou no horizonte.

Enquanto subia as escadas e pagava a passagem, ela se lembrou da última vez em que vira Ana. Desejava que as coisas não tivessem sido tão complicadas, desejava poder mudar o que havia acontecido, sentia-se culpada por ter deixado sua antiga companheira nas condições em que deixou. Mas, de que outra forma explicar a Ana suas razões? Sabia que ela não era o tipo de garota que dava ouvidos. É verdade, Luísa havia planejado um pedido de desculpas logo após o incidente, mas no nervosismo de sempre deixar para depois, o tempo passou demais, e agora já não tinha coragem de procurar por ela. Seria aquela meia de abelhinhas e flores uma espécie de sinal? Tentava organizar os pensamentos. Sentou no seu lugar de sempre: na fileira esquerda dos bancos do ônibus, um assento depois da porta de saída. A paisagem na janela, dessa vez lhe trazia certa angústia. Não conseguia afastar seus pensamentos daquela fatídica noite.

"O que você quer dizer? ".

"Eu não sei, Ana. Eu não sei. É só que eu não consigo mais fazer isso. "

"Fazer isso o que? É claro que você sabe, Luísa. O que você tá tentando me dizer pelo amor de deus? Eu tô nervosa. "

"Talvez você devesse encher a cara de drogas pra vir conversar comigo".

Aquilo havia soado com toda ironia que Luísa pretendera, ainda podia se lembrar das gotas de lágrimas se formando nos olhos de Ana.

"Tudo é por causa disso? "

A voz embargada e decepcionada de uma Ana frágil e perdida não comoveram. As duas já não mais se conheciam. Não havia faísca nenhuma no mundo capaz de reacendê-las naquela noite na Praça da Liberdade.

"Não é por causa disso, é por causa de tudo. Eu não posso mais ser sua namorada, eu não posso mais fazer isso. Eu não quero. Eu preciso recomeçar, preciso deixar tudo pra trás e não consigo manter você. "

O mesmo silêncio perturbador que havia se formado entre as duas naquela ocasião, parecia estar presente ali dentro do ônibus com Luísa. Ela se lembrava de tudo, mesmo sem querer. Lembrava-se dos apelos desesperados de Ana, sua voz rouca se esforçando através do choro, as palavras de acusação, os pedidos de desculpa. Seus olhos tão sozinhos. Tão solitários. Ela quis abraça-la, mas não podia fazer isso por pena. Luísa se lembrava de cada gesto, de todas as vezes em que virara a cabeça para o lado, desejando que aquilo não se prolongasse mais. As duas haviam estado de mãos dadas e, de repente, Luísa havia encontrado a coragem de que precisava para dizer tudo o que sentia. O "eu te amo" veio dos lábios de Ana.

"Você não pode usar essa frase pra me convencer a fazer as coisas que você quer. "

Era realmente uma pena que todos os eventos convergissem para aquele momento. Logo as duas, que antes haviam se pertencido tanto. O adeus não lhe soava como adeus. Algo estava incerto, mas ela apenas havia deixado os dias chegarem e irem embora. Todos eles. Tentou afastar os pensamentos sobre Ana e todo resto, mas quando Luísa alcançou a Estação do Metrô no Eldorado, a última frase que dissera a Ana tomava forma em sua mente.

"Eu também amo você, mas isso não é suficiente, você sabe. E você não deveria ter que me convencer a ficar. Você não deveria implorar pela presença de ninguém. "

Luísa também se lembrou de como havia pensado, por um instante, que as duas se abraçariam e tudo terminaria sem ressentimentos. Ela até mesmo havia aproximado o passo em direção a garota que já havia sido sua melhor amiga, mas Ana não podia permitir a intimidade, ao invés disso, foi embora depois de dizer seu desabafo final.

"Não me procure, não olhe pra mim, não apareça, não fale comigo. "

Ana havia chorado tanto naquela noite, que suas palavras mal foram compreendidas. Em seus olhos o desapontamento era escandaloso. Então ela desaparecera, procurando passagem no meio de jovens bêbados como ela. Parada, sozinha, Luísa achou que Ana se parecia a garota mais triste de toda cidade. Não era difícil enxergar, bastava reparar a hesitação antes das palavras, o tremor das mãos, o impulso desesperado por se agarrar a qualquer promessa de embriaguez.

Se Luísa tivesse ido atrás de Ana.

Se Ana tivesse voltado uns metros e esperado um pouco mais.

Se o mundo não tivesse acabado naquela Praça.

É tarde demais para segundas possibilidades. O caminho está sempre seguindo em frente. Mas, de qualquer forma, ali estava Luísa, quase um ano depois de tudo, vestindo a maldita meia de abelhinhas e flores, prestes a embarcar no Trem sentido Vilarinho. Olhou no relógio, eram 10:42 da manhã, provavelmente chegaria a Estação Central às 11:00, horário em que já deveria estar no consultório. Antes de entrar no metrô, pegou seu celular e mandou uma mensagem para seu psicólogo dizendo que iria atrasar. Respirou fundo, colocou os fones. A música que tocou, ela sabia de cor. Gravity do EDEN.

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⏰ Last updated: Jan 25, 2018 ⏰

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O que faz do horizonte tão belo?Where stories live. Discover now