E quando Linda finalmente pôde largar-se nos confortos do sofá, a campainha tocou. Ela até suspeitou quem seria, só não esperava que a visita fosse chegar num momento tão inoportuno. Suspirou profundamente a fim de liberar todo o estresse acumulado do dia – talvez o pior de sua vida - e marchou em direção à porta.
Mal terminara de girar a maçaneta e a pessoa do outro lado adentrou ao recinto abraçando Linda. Era uma mulher um pouco mais baixa, o rosto escondido pela volumosa e embaraçada cabeleira ruiva, que lhe caía até a metade das costas. Linda a priori não reagira, mas conhecendo sua melhor amiga, esperava atitude semelhante àquela. Então, deu leves e reconfortantes batidinhas na cabeça da visitante.
- Vim pra saber como você está... – disse abafadamente chorosa, seu rosto ainda afundado no terno de Linda e suas lágrimas encharcando-o lentamente.
Linda, serenamente, segurou o rosto da amiga com as duas mãos, afastando-o de suas vestes e fixou seus olhos cor de mel nos da visita.
- Estou bem, Glenda. Acho que agora estou bem.
- Você é uma mulher forte, sabia? Quero dizer, em meio a tudo que está acontecendo... – Glenda percebeu que falara demais. – Não sei como eu reagiria. Admiro muito sua força!
Linda sorriu tristemente e com um gesto convidou a amiga para a sala de estar. O fechar da porta foi silencioso e ela entendeu como Ele conseguia entrar em casa sem acordá-la. Enquanto secava as lágrimas, Glenda pôs a pasta que carregava no sofá, mas não sentou, parecia muito mais atordoada do que qualquer um que vira naquele dia. Talvez fosse porque sentia a necessidade de extravasar todo aquele sentimento coletivo repulsivo ou, quem sabe, uma desculpa para reaproximar-se de sua melhor amiga – a briga da semana passada não tinha sido resolvida; Mas em seu íntimo, Linda sabia que era muito mais. Era questão de saúde mental.
O maior defeito de Linda por acaso viria a ser sua maior qualidade: todos os seus problemas eram internalizados. Em sua opinião, nenhum problema seu deveria ser a causa dos problemas alheios. Atitude nobre para muito, mas para Glenda, isso lhe traria males infinitos. Nos últimos dias, a ruiva veio tentando extrair da amiga suas emoções: esse fora o motivo da discussão. Linda compreendia a níveis pessoais a empatia da amiga, mas não aceitaria invasão alguma em sua vida pessoal.
- Victor! – lembrou Glenda, como quem viera pensando no assunto até chegar à residência da velha amiga de faculdade e esquecera na porta do elevador. – Como ele está?
- Está na casa da minha mãe. Pedi para não contarem nada até eu permitir.
- Linda... Meu Deus, como ele reagirá?
- Não sei. – disse a anfitriã enquanto fitava a janela no lado oposto. – Não faço a mínima ideia.
E esse era o problema: ela simplesmente não sabia como seu próprio filho reagiria, e nem ousava a isso. A infância da bem-sucedida empresária havia sido ótima, cheia de regalias, festas familiares e tudo do bom e do melhor que sua batalhadora mãe pôde oferecer. Linda via que seu filho merecia tudo isso e muito mais, pois era seu filho. Nada de ruim poderia acontecer enquanto ele for seu filho... Mas aconteceu... Naquele mesmo dia.
- Quant... – Linda respirou fundo para poder completar a frase. – Quantas pessoas morreram?
Glenda assustou-se, mas ficou feliz por ter, de certa forma, atingido uma parcela ínfima do seu objetivo. Respondeu firmemente:
- Trinta e três.
Linda pôs a mão na boca e ergueu o olhar para o lustre que pendia sobre a sala. Piscou rapidamente como quem obrigava as lágrimas a retornarem às suas vias. Trinta e três, o número que não parava de ecoar em sua cabeça. Será que ela um dia poderia perdoá-lo? Perdoar o marido que matou trinta e três pessoas numa explosão de ônibus? Como conseguiu explodir um ônibus? Mas quem seria ela para responsabilizar-se por algo tão cruel? A real pergunta seria: será que Deus algum dia o perdoará?
A imagem do marido lhe veio à mente incontáveis vezes naquela noite. Ela estava sentindo na pele as consequências dos dois extremos de um ser humano. De um lado seu amor, que conhecera ainda na faculdade quando era uma jovem adulta desorientada; Seu melhor amigo e companheiro, pai do seu adorável filho Victor... Não havia adolescente mais sensato e adorável! Para ela, o responsável do melhor presente que alguém poderia lhe dar: o poder de ser mãe. Do outro lado, o assassino, miserável, covarde e procurado Augusto César Bemino. Mais conhecido como Guto.
Os minutos voaram naquela noite nublada de Sexta. Em algum momento, enquanto estavam sentadas, Glenda decidiu que estava na hora de partir e deixar sua amiga imersa na reflexão. Pegou a pasta que deixara no sofá e enquanto passava a alça única sobre sua cabeça e preparava um "qualquer coisa, me liga", um barulho energético quebrou o silêncio daquele cenário fúnebre.
As duas entreolharam-se esperando ter alguma resposta imediata àquele som, afinal, era obviamente o toque de um celular. Entretanto, ao perceberem que se encararam por tempo demais e que, aparentemente, o aparelho não parecia ser de nenhuma delas, deixaram-se guiar pela vibração daquela chamada dançante.
O toque parecia estar programado no volume máximo e ecoava por toda a sala de estar. Glenda tinha certeza que o celular estava debaixo do sofá e tentou empurrá-lo um pouco mais para a direita. Linda concentrou-se para saber a direção de onde vinha do som, percebeu em seguida que o eco aumentara sua potência e, então, chegou à conclusão que o aparelho estaria dentro de algum recipiente...
- Está vindo da estante. – disse Linda, caminhando apressadamente.
O som emitido finalmente parou. Próximo a duas estatuetas de cavalos que pareciam reverenciar, encontrava-se um vaso branco com flores amarelas. Linda estava eufórica e seu otimismo encontrava-se no auge. De quem quer que fosse aquele celular, ela sabia que provavelmente teria as respostas necessárias para as todas as perguntas que sua mente ágil, porém conturbada, formulava e reformulava. Na tela do aparelho, duas ligações perdidas e uma mensagem que fez a grande empresária Linda Bemino cair aos prantos:
"Por favor, preciso de ajuda...
Guto"
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Terceiro Dígito
Mystery / ThrillerEle sempre foi diferente das crianças da sua idade. Mas até que ponto ser diferente é algo bom? Neste suspense, somos imersos na vida do estranho, conturbado e procurado Guto Bemino. Tente não se envolver, ele não é confiável.