O Mal

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O corpo se encontrava lívido. Os olhos se apresentavam vítreos e os lábios sem cor. A pele poderia confundir-se com um pergaminho. No entanto, de acordo com o legista, não havia muito tempo que aquele homem viera a óbito. Seu corpo estava sem uma gota de sangue sequer. Morrera em consequência de uma hipovolemia.

Não havia ferida aparente. Nem um corte profundo através do qual aquele resultado pudesse ocorrer. Não havia trauma contundente. Não havia nada. Apenas aquele corpo lívido, parecendo um boneco de cera deitado sobre a fria mesa do necrotério.

Em breve começariam a circular os boatos sobre o caso. Que, aliás, não era o primeiro caso. Na verdade, o corpo daquele homem era o terceiro que havia aparecido em menos de duas semanas, apresentando as mesmas características. Os outros dois mortos eram indigentes. Moradores de rua, pessoas de quem ninguém daria falta. Então não lhes atribuíram grande importância. Mas a morte desse sujeito fez a coisa mudar de figura. Pessoa rica. Isso explicava o alvoroço do chefe de polícia quando me telefonou às 3 horas da madrugada.

O toque do telefone me acordou de um sono profundo. De mau humor me vesti às pressas e me dirigi ao necrotério onde a vítima já se encontrava disponível para que eu pudesse coletar as primeiras pistas. Como das outras duas vezes o corpo foi encontrado em um beco escuro. Não havia marcas ao seu redor: nem pegadas, nem qualquer coisa do tipo. Não havia nenhum indício, nenhum fio de cabelo, nenhuma digital. Era como se o sangue tivesse evaporado do corpo daquele sujeito, ou então como se alguém tivesse vindo dos céus e sugado seu corpo até a última gota, sem deixar marca aparente de como o fizera.

"Bom dia" o cumprimento do legista me pareceu uma ironia, "o que você acha? Terceira vítima, hein? Será que temos um vampiro em ação?"

"Ah ah ah! Muito engraçado doutor" respondi de má vontade, "e... bom dia para quem?"

"Só estava tentando conversar!", respondeu o médico, na defensiva.

"Você passa tanto tempo com os mortos que não sabe mais falar com os vivos. Causa da morte?"

"Como você pode perceber não existe uma gota de sangue no corpo deste sujeito. Sabemos quem é a vítima porque a carteira estava no seu bolso. Empresário local... na verdade, nem precisaria da carteira para confirmar a identidade. Esse sujeito está sempre com a cara estampada nos jornais."

"Algum vestígio no corpo?" perguntei só por perguntar. Já sabia qual seria a resposta.

"Nada", me disse laconicamente o legista.

Agradeci e me retirei. Achei que seria interessante aproveitar a escuridão para observar o local do crime. Penso melhor quando o cheiro da morte ainda está fresco. Quando cheguei ao beco fiquei pensando, que diabos estaria fazendo um cara rico e bem apessoado naquele lado da cidade. Procurando por drogas ou por uma prostituta, talvez. Esses ricaços têm taras que as pessoas nem imaginam. Por fora são uns santinhos, por dentro... humpf.

Devagar comecei a vasculhar o beco. Muito lixo acumulado pelos cantos. Ratos fazendo a festa, desfilando para cá e para lá, alguns deles tão grandes como gatos adultos. A minha presença não fez a mínima diferença: não ficaram assustados e nem saíram correndo. Não seriam meus passos que atrapalhariam seu banquete.

Para variar, no lugar onde o sujeito foi encontrado não havia sinal algum. Nada de vestígios. Então o que temos? Temos três vítimas sem uma gota de sangue sequer no corpo, sem nenhum sinal aparente de trauma ou ferimento. Temos um assassino que leva o sangue das vítimas e não deixa nenhuma pista. É talvez o legista tenha razão, um vampiro seria um bom suspeito!

Dei uma risadinha amarga e quando me virei observei a forma de alguém fazendo sombra diante da luz do poste que iluminava a rua. De onde estava e devido a iluminação eu não conseguia identificar o rosto da pessoa e nem dizer se era homem ou mulher.

"Oi", falei, "Isso aqui é um local de crime, você não pode ficar aqui. Vai contaminar a cena. Logo o pessoal da perícia deve chegar", na medida em que falava fui me aproximando da figura, e me surpreendi ao ver que ela parecia não ter pés e muito menos parecia estar respirando. "Deve ser o sono", pensei. "Quem é você? Por acaso mora aqui perto? Viu alguma coisa?"

"Quem é você? Por acaso mora aqui perto? Viu alguma coisa?" repetiu a sombra.

"Ah! Era só o que faltava... um engraçadinho" pensei com os meus botões. "Olha amigo eu sou da polícia. Não estou para brincadeiras, nessa noite alguém foi assassinado neste beco. Se você não viu ou ouviu nada, vai dando o fora antes que eu prenda você por desacato a autoridade."

"Autoridade?", a voz que antes tinha um timbre parecido com a minha, passou a ser gutural e irônica. E parecia sair da garganta ao invés da boca. De repente comecei a me sentir tonto e incapaz de raciocinar direito. Senti um toque frio no meu braço. Gélido. Tão gélido que parecia transpassar o tecido da minha camisa e queimar minha pele.

O medo foi tomando conta do meu corpo. Agora já não era mais eu quem me aproximava da sombra, mas sim a sombra que se aproximava de mim. Quanto mais perto ela chegava, mais frio ia ficando e maior se tornava o medo que eu sentia. Quando a sombra ficou frente a frente comigo pude ver seus olhos... Não exatamente olhos. Buracos onde os olhos deveriam estar. E eles eram vermelhos. E atrás daquela vermelhidão havia um infinito de dor e sofrimento.

"Mortal, você sequer é digno de que eu nomeie você. Você não é nada. Apenas um saco pútrido de vermes, apenas repasto para mim. Eu venho de tempos imemoriais, sou tão antigo quanto a terra e sempre caminhei entre vocês, sem que fossem capazes de perceber minha presença."

"Quando uma epidemia se expande e enterra suas garras levando centenas de milhares de almas, procure atentamente e verá minha presença. Quando acontecem acidentes, guerras, desastres... procure atentamente e verá que estou lá para abraçar as almas e me alimentar do seu precioso sangue."

"Vocês são meu repasto. Eu caminho pela terra e causo dano e destruição. Eu sou um cavaleiro do apocalipse e, juntamente com os meus irmãos, irei devassar o mundo até não sobrar pedra sobre pedra".

"Os corpos que deixei não passaram de uma mensagem para que as pessoas saibam da minha presença. Quero causar histeria, quero causar medo, quero que elas pensem que estão seguras em suas casas. Então irei de porta em porta, os visitarei e beberei a essência de seus filhos."

"Quanto a você, deixarei que viva. E serei eternamente seu pesadelo."

Quando acordei estava deitado em meio ao lixo. "Caramba", pensei, "preciso parar de beber." Senti uma dor no braço e ao levantar a manga da camisa, vi que havia uma marca de queimadura. Isso me causou certo espanto, mas, mais espanto ainda me causou a voz do perito, quando me disse: "Detetive, seus cabelos estão brancos!"

Sim... Depois do meu encontro com o mal (hoje eu o denomino assim), meus cabelos ficaram totalmente brancos. Tive que abandonar a polícia. De uma hora para outra desenvolvi um câncer. Aos poucos essa maldita doença está me consumindo. Os médicos me disseram que eu tenho pouco tempo de vida. Mas eu sei que eles estão errados.

Vou viver muito. Ele não quer que eu morra antes de ver completa a sua obra. Eu vejo na televisão todos os dias: desastres de avião, guerras, epidemias... agora mesmo o vírus ebola voltou a atacar na África. Em todos esses lugares ele aparece. Eu o vejo... aquele mesmo vulto escuro... Ele estende suas asas e engole as pessoas.

O MALOnde histórias criam vida. Descubra agora