A Rua das Dores não era nem a a principal e nem a menos importante da cidade. Ficava duas ruas abaixo da agência do Banco do Brasil e de uma concessionária muito famosa, de carros caríssimos e feios. Nela se encontrava um pequeno supermercado, que supria bem a necessidade dos vizinhos, várias lojas de calçados, duas sorveterias, uma casa de lanches e incríveis cinco igrejas, de várias denominações. Só por curiosidade, também era comumente chamada de A Rua de Jesus.
Além desses comércios — e, sem polêmica, incluo fora as igrejas —, havia também um lugarzinho que fazia perfeito jus ao diminutivo que usei. Era um salãozinho para cortes de cabelo, tanto feminino quanto masculino, estabelecido entre uma sorveteria e uma oficina de lanternagem, que esqueci de mencionar lá em cima. Era tão pequeno o salão que havia até limite de pessoas que cabiam dentro; o limite era de cinco pessoas, contando o moço que cortava os cabelos e também contando as crianças, se houvesse.
Curiosamente, no histórico do lugar tinha a anotação de que apenas uma vez, uma única vez em quatro anos de funcionamento, o salão ficou completamente lotado. A parte ruim desse mérito é que das pessoas que estavam ali dentro, somente duas esperavam um corte de cabelo; as outras duas, mãe e filho estrangeiros, buscavam, estranhamente, informação de onde ficava a feira que acontecia naquele bairro. Quando mãe e filho saíram, o salão voltou ao seu vazio corriqueiro.
E então chegamos ao ponto crucial. Porque é justamente sobre esse salão e seu fraquíssimo movimento que se fundamenta essa história. E já adianto que não sou mentiroso e nem um escritor de araque, talvez só um pouco. Mas o que interessa, de verdade, é a verdade, são os fatos reais, uma redundância que resolvi arriscar.
Meu nome, caso queira saber, digo que não é importante, mas o do cabeleireiro é Marcos, mais conhecido como Marquinhos, não sei o porquê. Ele mora em um barracão sala/cozinha (sem o peso da "americana") e um quarto, que divide com a mãe, Dona Rosinha. Esse conjunto fica atrás do salão e, sem contrariar as expectativas, não tem nada de luxo e requinte. No entanto, não deixa de ser um lar, um cafofo, como diz Marquinhos nos seus momentos descontraídos.
O salão foi uma herança do pai, um homem sisudo, de cara fechada, que morreu de câncer, porque essa desgraça mata sem dó. Ao morrer, Seu Amaro deixou o estabelecimento, que antes era um lugar para se engraxar sapatos, ao único filho que tinha com Dona Rosinha. Suas últimas palavras foram tão fortes..."Meu filho, engraxe por mim os sapatos sem brilho". Foi emocionante, de verdade.
Mas acontece que o pobre menino, Marquinhos, estava, na época, com quinze anos e não sabia nada do seu futuro. Era uma criança simples, que conhecia o capitalismo, sem conhecer de fato, só porque gostava de comprar coisas. Como eu disse, simples, daquelas crianças que veem um brinquedo ou, sei lá, bolacha e já quer para si.
No entanto, o tempo passou, o menino cresceu, virou homenzinho e então percebeu que as coisas iam muito mal dentro de casa. Como só Dona Rosinha trabalhava, a comida era pouca, repetida, muitas vezes até faltava. A água e a luz eram constantemente cortadas...Tristeza atrás de tristeza.
Foi aí que Marquinhos conheceu um sistema nacional que prometia profissionalização, o SEM-AI, nome genialmente concebido pelos marqueteiros para se aproximar do "Sem Dor", "Venha para cá e saia do Sofrimento". Quando buscou saber mais a respeito, Marquinhos verificou os cursos e, dentre três que achou interessante, escolheu o de cabeleireiro, principalmente porque já tinha um lugar para começar seu próprio negócio.
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Os Coisinhas
FantasyBem, essa história é uma mistura de realidade e fantasia, coisa estranha e coisa normal. Ela narra uma parte da vida de um cabeleireiro simples e jovem, que de repente se vê entre o que nunca imaginou ser possível ver e o que, de fato, está vendo. S...