V | LIVRO IX - NOITE ESCURÍSSIMA, BRILHANTE AURORA

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I — Compaixão para os desgraçados, masindulgência para os felizes

Terrível coisa a felicidade! Nada mais nos lembra, tudo para nós consiste no gozo dela! Apenas alcançado o falso fim da vida — a ventura — logo nos esquece o verdadeiro — o dever!

Injustos seríamos, porém, se acusássemos Mário.

Mário, já o explicámos, antes do seu casamento não tinha dirigido perguntas ao senhor Fauchelevent, e depois dele, receava fazê-las a Jean Valjean. Contudo, arrependera-se de ter deixado escapar a promessa que lhe fizera, exprobrando-se amargamente de ter feito semelhante concessão ao desespero, no que andara mal. Limitara-se a afastar Jean Valjean, pouco a pouco, de sua casa e a tornar cada vez menos sensível a sua imagem no espírito de Cosette. Interpusera-se sempre, para assim dizer, entre Cosette e Jean Valjean, convencido de que, por este meio, chegaria a tornar-lho indiferente e até a fazer-lho esquecer.

Era mais do que esquecimento, era eclipse.

Mário julgava necessário e justo o que fazia. Parecia-lhe que tinha para afastar Jean Valjean, sem dureza, mas também sem fraqueza, razões Sérias, que já se apreciaram e ainda outras que mais tarde se apreciarão. Tendo-lhe o acaso, proporcionado ensejo de tratar com um antigo caixeiro da casa Laffite, por causa de uma questão de que fora advogado, veio a obter, sem os procurar, misteriosos esclarecimentos, que não pudera, todavia, esmiuçar, já para não trair o segredo que, sob palavra de o não revelar, lhe fora confiado, já para não comprometer a arriscada posição de Jean Valjean. Naquela ocasião, era sua convicção que tinha a cumprir um grande dever: a restituição dos seiscentos mil francos do dote de Cosette a alguém, que procurava descobrir, procedendo nesse empenho com a maior circunspecção que o caso demandava.

Quanto a Cosette, a inocente jovem não sabia de nenhum destes segredos, mas também seria injustiça condená-la.

Entre ela e Mário estabelecera-se uma espécie de magnetismo irresistível, que a forçava a fazer instintiva e quase maquinalmente quanto ele queria. Conhecia que era vontade de Mário que ela assim procedesse para com «o senhor Jean», e, portanto, resignava-se. Seu marido entendera que não lhe devia dizer coisa nenhuma; ela sofria a influência vaga, mas evidente, de suas tácitas intenções e obedecia-lhe cegamente. A sua obediência, neste ponto, consistia em não se lembrar que Mário esquecia. Para chegar, porém, a este resultado, não empregava o mínimo esforço. Sem ela mesma poder dizer porquê nem haver neste facto motivo para acusá-la, a alma da jovem consubstanciava-se a tal ponto com a de seu marido, que aquilo que se entenebrecia no pensamento de Mário obscurecia-se no dela.

Cumpre, porém, não avançar temeridades; na parte que diz respeito a Jean Valjean, este esquecimento e escuridão eram meramente superficiais. O que ela experimentava era mais embriaguez do que olvido. No fundo, consagrava entranhado afecto aquele a quem por tanto tempo dera o nome de pai. Porém ainda maior era o afecto que consagrava a seu marido. Por isso era que a balança do seu coração faltava ao peso. Como assim não havia de ser, se quase toda estava pendida para um lado?

Às vezes, Cosette trazia à conversa Jean Valjean e mostrava-se admirada de o não ver aparecer. Quando tal caso se dava, acudia logo Mário, tranquilizando-a:

— Creio que está fora da terra. Não estás certa de ele dizer que tinha de fazer uma digressão?

— É verdade — dizia Cosette a sós consigo.

E acrescentava ainda mentalmente:

— Efectivamente, ele costumava fazer destas desaparições, mas nunca as prolongava por tanto tempo.

Por duas ou três vezes mandou Nicolette à rua do Homem Armado perguntar se o senhor Jean já tinha recolhido da sua digressão. De ambas mandou Jean Valjean, por intermédio do porteiro, responder que não.

Os Miseráveis (1862)Onde histórias criam vida. Descubra agora