"... Está fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou, que te beijou meu amor..."(Máscara Negra – Zé Ketti)
O barulho das buzinas dos carros ao redor serviu de estopim para os nervos de Javier entrar em colapso, o jovem médico deixou escapar uma gargalhada histérica e tentou contar mentalmente até dez, mas sua falsa calma tibetana deu-lhe adeus no número oito, então abriu a janela e botou a cabeça para fora esbravejando com o motorista da pick-up que fungava como um touro bravo no para choque do seu carro.
- Hijo de puta 1, por que usted2 não passa por cima? Diablo 3. - Javier gesticulou colérico levantando o dedo médio em riste, uma atitude deveras inesperada por sua esposa, Maria, dada a sua personalidade sempre contida e educada.
- Javier, se acalme, sou eu que estou parindo, homem! – Maria ralhou fitando-lhe através do retrovisor, entre uma respiração "cachorrinho" e outra, levando a mão ao baixo ventre no instante que se contorceu ao ser tomada por mais uma contração.
Javier levantou o queixo e os seus olhos se encontraram com os de sua amada, aflito observou sua esposa pelo vidro frio, virou o punho para avaliar os minutos que corriam no relógio e confirmou angustiado que o espaço de tempo entre uma contração e outra estavam encurtando cada vez mais. Um pigarro insistente provocou-lhe uma tosse, e sem que pudesse se conter, deixou escapar em voz alta o que acabara de pensar, balançando a cabeça claramente em negativa.
- Isso não é nada bom.
As ruas no entorno do Largo do Campo Grande, bairro onde moram, estavam completamente engarrafadas, como eles poderiam chegar à maternidade antes do bebê nascer?Um grupo de homens travestidos, eufóricos e barulhentos passou cantando em meio ao trânsito caótico com pistolas de água em punho fazendo Javier pensar por breves instantes: Já não bastava a sua Maria entrar em trabalho de parto antes do previsto, ainda tinha que ser em plena noite de sábado de carnaval? O destino só podia estar sacaneando com ele.
Um gemido agoniado de Maria tirou Javier do seu "pequeno transe", trazendo-o de volta para a sua louca realidade e o seu coração se espremeu no peito, quando sua amada resmungou com todas as letras o que ele já imaginava.
- Não vai dar pra esperar, o bebê está nascendo, você vai ter que fazer o parto.
- Não, eu não posso... – Javier arregalou os olhos e negou rapidamente com a voz esganiçada.
- Claro que pode, se tem uma pessoa capaz de fazer o parto, esse alguém é você, meu amor. – Maria disse baixinho, em um sibilo agoniado.
- Mas é diferente, você é minha...
Maria retorceu o corpo no banco traseiro, com o rosto transformado pela dor, tal qual a garotinha do "exorcista", prestes a vomitar gosma verde por todo o canto e interrompeu Javier com os olhos esbugalhados, estirando a boca espumante em uma linha rígida, os dentes cravados nos lábios para suportar seu martírio.
- Sou sua esposa e você é a porra de um médico, Javier, respire fundo e se acalme, você consegue.
Javier aguardou o trânsito desempacar um pouco e estacionou lentamente o carro no acostamento, murmurando baixinho como se entoasse um mantra:
- Eu consigo, eu sou um médico, eu consigo!
- Eu sou um médico, estou mais do que acostumado a fazer partos, é claro que eu consigo - Ele largou o volante e saiu com os passos firmes, mas assim que abriu a porta traseira e se sentou ao lado de Maria, a sua segurança esvaiu-se como um fio d'água, frágil...
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A cartomante - Paixão Foliã
Short StoryPrimeiro conto da duologia Paixão foliã. Javier Rodriguez é um homem dedicado exclusivamente a sua profissão, seus relacionamentos amorosos se limitam a alguns momentos de prazer e nada mais. Maria da Anunciação se entregou desde cedo ao casament...