'' Pronto. '', suspiro, bufando uma mexa de cabelo castanho claro que se havia desprendido do puxo desalinhado que tomava lugar no topo da minha cabeça, desviando-a do olhar. Levo as mãos à cinta e olho em volta. A trigésima-terceira caixa já estava cheia e encerrada com a fita-cola castanha e larga.
Odeio essa fita-cola. Não sei se dá para se odiar fita-cola, mas eu odeio. Ela chia. Toda a gente odeia ratos e eles também chiam. Foi horrível ter de encarar a fita-cola. Porque eu a odeio, do fundo do coração.
Sacudo as minhas mãos, passando-as depois pelas calças de ganga escura que envergo nas pernas magras. Respiro fundo mais uma vez. Lembrei-me que esta será a última noite a dormir em minha casa. Em breve, estarei no outro lado do país. Deixar a minha terra por uma cidade não me parece nada bem. Mas, quem é que me dá ouvidos? Tenho 16 anos, meus amigos. Ninguém dá ouvidos a uma rapariga de 16 anos.
Pietro Belluschi, um arquiteto americano, disse uma vez que nunca poderíamos desenhar um edifício tão bonito como as árvores. Será que há árvores no outro lado? Não sei se há árvores na cidade. Eu gosto mesmo muito das árvores.
'' O'loughlin ''. Será que eles sabem dizer o meu apelido no outro lado? Não creio que haja muita gente com este apelido. Juro que se eles não o souberem dizer vou partir uns narizes - ou pensar nisso, pelo menos.
Têm mar, lá. Aqui não tem mar. Queria era ser como o mar. Bonita, misteriosa, selvagem e livre. Não sou feia. Sou bonita, até. Mas não me acho especial. Creio que não sou clara. Não me acho misteriosa, nem selvagem. Não sou livre. Infelizmente, não sou livre. Não sou como o mar.
— Chloe - A voz doce da minha mãe soa do topo das escadas, seguida de alguns passos apressados e um ligeiro eco. As sandálias de cunha fazem muito barulho nos degraus de madeira. O som quebra toda esta rede de pensamentos que balança na minha cabeça. Penso muito. Isso faz-me misteriosa, mas impede-me de ser selvagem e livre. - Como vão as caixas? - Ela sacode as suas mãos de dedos estreitos e compridos como os meus. E é bonita. Chama-se Delilah. Tem os olhos cor de avelã como os meus. O cabelo dela também é castanho claro, longo e um ondulado. Tem a pele muito macia e morena e cheira bem. Gosto das clavículas salientes dela. Os dentes dela formam uma linha perfeita e são extremamente brancos e brilhantes. Traz um sorriso triste.
Eu sei que ela não quer deixar o centro de voluntariado nem o jardim nem esta casa. Ela não o vai dizer porque eu sei que ela não quer magoar o meu pai. Foi transferido do hospital onde trabalhava para um do outro lado do país. Compreendo que lhe seria difícil ficar lá sozinho. Por isso, nós vamos com ele. Eu, a minha mãe e o Theo, o meu puto de 7 anos. Tem uns grandes olhos escuros, como os do meu pai. E os cabelos ondulados como os da minha mãe. Tem as pestanas longas e enroladas para cima.
Aperto a t-shirt branca que usava com as mãos, limpando o suor que se havia acumulado nas palmas das mesmas. Está calor, hoje. Sorrio-lhe levemente e olho para a parede de caixas que tínhamos vindo a criar ao longo das últimas semanas. São trinta-e-três.
— Já fechei a última, mãe. - Comprimo os meus lábios rosados num sorriso forçado percorrendo cada caixa castanha com o olhar. Algumas dizem '' FRÁGIL ''. Acho que as foi buscar ao chinês ou ao pronto-a-vestir da Miss Johnson, a solteirona de cinquenta anos com quem a minha mãe simpatiza por caridade. Digamos que bastante sumptuosa ou robusta, a mulher. - Temos que ter cuidado, são os meus livros, mãe. - Os meus olhos esbugalhados fitam os dela. É dos meus livros que estamos a falar. Não tenho nada mais precioso do que eles.
Ela solta uma pequena gargalhada. Sinto-me feliz por a ter feito rir.
— Teremos. - Ela deixa-se cair sobre o sofá e suspira, olhando o teto em madeira envernizada da nossa casa e o lustre em vidro baço por cima do sofá de 3 lugares em pele castanha, um pouco gasta. Segue-se uma pequena pausa. - E essa dor no estômago? - Ela gira a cabeça para que me pudesse encarar, sentada no banco alto da cozinha.
— Hm... - Passo a mão pelo estômago e desvio o olhar dela, reticente. Sou muito pessimista. Acho que também me impede de ser selvagem e livre.- Dói um bocado... - Elevo um dos meus ombros, olhando-a de esguelha. Tinha andado a investigar sobre doenças cujos sintomas poderiam ser dores abdominais: gases, úlceras, gastrites, cancro do estômago. Devo ser a primeira pessoa a dizer isto, mas quem me dera ter gases.
— Temos de ver isso, filha... Já te anda a doer à algum tempo. As dores de estômago podem ser perigosas. - Como se eu não soubesse, pff. - Quando chegarmos à nossa nova terra o teu pai vê isso. - Sorri-me em reconforto.