Caminhando para Cima

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— Conhece el Cotopaxi? — perguntou Juan no seu português com sotaque.

Moisés disse que não.

— Más de 5 mil metros — explicou Juan. — El mundo fica más pequeño.

Juan enfiou uma colher da sopa de pollo na boca, o analista de sistemas olhou pela janela. Estavam em um restaurante em frente a um shopping, no centro de Quito. Era sexta-feira, o segundo dia de Moisés naquela cidade. Ele viu o mundo girar enquanto movia a cabeça de volta ao prato, para voltar ao normal no segundo seguinte. Sentia-se assim de tempos em tempos, desde que chegara à cidade na noite de quarta-feira. Estava instalado num hotel há cinco minutos dali de onde podia avistar ao longe montanhas verdejantes ofuscadas pelo nevoeiro durante o dia. Outro efeito da cidade sobre ele estava em seus lábios partidos como de quem chupa limão com sal.

Juan era o gerente de engenharia da empresa, e, com um sorriso de alívio, recebera Moisés na sua sala na quinta-feira. O analista fora enviado pela matriz brasileira para resolver um problema com o sistema RAID de dois servidores. Na sexta-feira pela manhã tudo já estava resolvido. E desde então ficaram conversando, gerente e analista. Sabe quando se conhece alguém pessoalmente após ter conversado com ela pelo telefone e ouvido falar dela durante anos? Podemos dizer que era precisamente o caso. A conversa começou na empresa até que os seus estômagos os deslocaram para o restaurante.

Moisés gostava de Quito. Era bom passar um tempo submetido aos 5 graus de temperatura à noite após um longo período de calor de derreter o asfalto em Recife. Quito era uma cidade colorida nas saias das meninas colegiais, amarga no sabor do tiramisú, confusa com as bicicletas subindo e descendo das calçadas à luz do crepúsculo, mitológica nas terras marcadas pelos incas, religiosa nas igrejas douradas de teto alto e obscura nos vales sombreados pelas montanhas. Histórias de colonizador e colonizado se misturavam em cada quarteirão.

Filha de mineiros como era, Cris gostaria dali. Cris...

— Em quanto tempo um homem consegue subir? — indagou o brasileiro.

— El percurso todo és en torno de 5 ôras — foi a resposta. — Precisarás de coche... de carro.

O analista tinha tempo. Seu voo de volta para São Paulo estava marcado para domingo à tarde. No sábado pela manhã iria ao vulcão, à tarde visitaria Mitad del Mundo e à noite arrumaria suas malas.

Despediu-se de Juan, deixando metade da sua sopa no prato.

Quando estava na sua picape alugada colocou para tocar uma música indie, depois decidiu por colocar uma canção de rock cristão.

— Chegou a hora de conversar com Deus e me redimir — disse quando deu partida no motor de arranque.

O brasileiro dirigiu para o sul de Quito e além. O vento frio comum das manhãs o acariciou desde cedo como o abraço de um monstro de gelo, obrigando-o a sair do hotel de calça jeans e casaco marrom de algodão que usaria na subida. Encontrou uma barraca num local ermo cercado por vegetação rasteira. Havia visto na internet na noite anterior que era ali que vendiam luvas, gorros e cachecóis. Azuis como estavam seus dedos, colocou as luvas imediatamente e, de braços cruzados, atritou as mesmas contra o casaco a fim de obter mais calor até chegar ao carro. Dirigiu por mais de uma hora além de Quito, a cada minuto o abraço gélido ficava mais apertado, porém estava acompanhado por coníferas, e coníferas lhe traziam uma sensação familiar e infantil de colocar as bolinhas coloridas na árvore natalina num tempo em que ele era o centro de todas as atenções.

O asfalto se tornou pedra. Vegetação rasteira substituiu as coníferas. Viu algumas placas solares em postes num local onde uma dúzia de pessoas estacionavam seus carros e se reuniam para tirarem fotos. Moisés não demorou mais que um segundo seu olhar em cada uma dessas coisas. Aos poucos, nas margens das pistas foram surgindo pedras cuja maior era do tamanho de uma trave de futebol, e elas tiravam ainda mais a cor daquele vale desolado, e o fazia desejar a vista das coníferas novamente. Já havia passado das 10h, e o céu estava azul, mas não havia muita claridade, pois as encostas obscureciam o mundo e as nuvens pareciam mais próximas. Num dado momento viu à sua direita a maior construção natural que havia visto até então. Erguia-se da terra um gigante rochoso em direção ao céu, resultado de séculos e séculos de soerguimentos de terra em tempos primitivos do nosso planeta. As rochas vistas de longe pareciam sangue, decoradas com um cume gelado quase que como glacê sobre um bolo de beterraba pontudo.

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