Capítulo Único

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  Azul, amarelo, preto e branco. Estas cores se repetiam na maioria das pinturas e eu adorava reparar em cada pincelada grossa e curta nas telas, imaginando a forma grosseira como Vincent devia sentar-se em frente aos quadros e com um movimento brusco expressar uma bela pintura. O movimento severo de uma mão calejada e os olhos azuis esverdeados atentos aos detalhes sutis, como uma sombra ao redor dos olhos, ou uma pétala de girassol faltando. Percorria por cada parte da galeria, passando por entre paredes de gesso branco dispostas no meio do salão de aparência industrial, utilizadas para apoiar os quadros.
  Era um privilégio poder visitar a galeria antes de ser aberta para visitação. Podia ver toda exposição em forma introspecta, sem murmúrios ou comentários errôneos sobre as artes. Aquele era meu silêncio e eu tinha todas imagens ao meu dispor, sendo uma vantagem de ser filho do curador das obras e estagiário do museu em que estavam.
  A arte me rodeava vinte quatro horas de meu dia. Estava no céu e nas árvores. Nas pessoas e nos objetos. Estava na percepção de mudanças e na estagnação de aspectos. Estava no ato de saber apreciar e compreender que a arte nada mais é do que fazer sobressair da natureza e da realidade um sentido e expressão.
  Todos os outros funcionários estavam organizando os papéis e documentação das pinturas, também se atarefavam em ajeitar na entrada do saguão cartazes e murais anunciando a exposição e dando informações históricas sobre o artista que tanto me impressionava. Van Gogh era meu assunto preferido. Se você falasse para mim sobre Frida, fotografia documental, fotografia dos anos 80 underground, Dali e outros, eu poderia falar por horas. Já se você me perguntasse sobre Van Gogh, nossa conversa levaria dias. Minha fascinação sempre foi muito envolvida com o fato icônico de Vincent ir "da loucura à arte", explorando seus medos e ansiedades, vendo como sua angústia e tamanha expressão eram descritas nas cartas para Theo. Chegando no auge de desequilíbrio ao cortar a própria orelha em uma briga com Gauguin e se amargurar mais e mais, resultando em seu trágico suicídio. Ele era tão cheio de arte e expressão que nem mesmo sua mente parecia processar direito, enlouquecendo-o de dentro para fora, tentando liberar tamanho dom. Era algo tão cinza, sem um lado apenas bom ou apenas ruim.
  Passava em frente de "Doze Girassóis em um Vaso" quando ouvi o som de algo caindo, se espatifando no chão e soando como vidro quebrando. Meu coração bateu mais rápido ao pensar em alguém roubando os quadros ou invadindo a galeria para roubar algo além. Sorrateiro, me escondi atrás de um dos expositores, olhando o centro aberto do saguão, com bancos de madeiras dispostos para as obras e uma clarabóia ampla no teto, iluminando o local com um banho de luz. Ali próximo dos bancos, avistei a cor rosa, de início pensei se tratar de uma das obras, caídas no chão, até que notei o movimento de algo abaixo, e percebi se tratar do cabelo de alguém. O rapaz se ergueu do chão segurando cacos de vidro e entre seus pés uma poça de um líquido vermelho.
  - Mas que merda!- Exclamou ele, praguejando- Porra!
  Ele se ajoelhou sobre aquilo, catando mais cacos pequenos e olhando com pesar para o que parecia ser refrigerante. Suspirei, reconhecendo o indivíduo como um dos novos funcionários. Ajeitei a coluna e me dirigi até ele, saindo de trás da parede de gesso.
  - Desculpa, mas o que aconteceu?- Perguntei sério, mantendo a postura.
  Ele ergueu o olhar, me encarando com seus olhos castanhos.
  - Eu derrubei minha bebida, senhor- Acrescentou ele com um toque sarcástico, debochando de algo, possivelmente, de meu semblante junto do uniforme e minha posição.
  Encarei o líquido de perto, sentindo o cheiro e vendo que aquilo não se tratava de refrigerante.
  - E o senhor- Acrescentei irônico, vendo seus olhos estreitarem para mim- Costuma beber em serviço?- Questionei.
  Ele sorriu de canto, baixando o olhar para os cacos em sua mão. Seus dedos eram longos e a pele bronzeada. Seu nariz adunco e lábios cheios franziam em uma carranca pensativa. Não me lembrava de seu nome e nem mesmo de seu currículo, já que fazia parte de minha ocupação analisar os candidatos para a vaga que ele estava.
  Ele se ergueu, ajeitando os ombros e me olhando como se esperando um veredito.
  - Então?- Disse firme.
  - Então o quê?- Rebati, um tanto confuso.
  - Você sabe, vai me demitir ou relatar para o curador, qualquer merda assim- Assumiu, levando os cacos até a lixeira mais próxima.
  Pude ver como sua estrutura era forte. As costas largas e os braços tatuados. A mandíbula cerrada e os olhos inquisidores, tudo compondo aquele garoto até então um mistério. Apreciei sua sinceridade, expondo daquela forma as duas opções mais plausíveis e que se aplicariam à ele.
  - Bem, poderia muito fazer isso- Falei, me ajoelhando para pegar uns cacos menores- Ou poderia, simplesmente, limpar isto tudo e esquecer que te vi aqui.
  Ele parou e me encarou, processando o que eu dissera. Logo depois, sorriu travesso, com um brilho perverso no olhar. Ele apanhou um pano do bolso e o entregou à mim, fazendo o mesmo e se juntando a mim, se colocando ao meu lado. Coloquei o pano sobre a bebida, limpando, e o garoto fazendo o mesmo.
  - Como é mesmo seu nome?- Perguntei, vendo como ele era ágil ao passar o pano rapidamente sobre o líquido e secá-lo- Lembro de aprovar você para a vaga, mas não me lembro bem de seu currículo.
  Ele evitou meu olhar, continuando a limpeza, de forma focada. Seu cabelo rosa iluminava-se com a luz que caía sobre ele. Suspirou e largou o pano, me olhando.
  - Eu me chamo Josh- Respondeu, voltando para a poça de bebida.
  Assenti, me calando e ajudando a limpar aquilo. Logo acima de nós, no expositor ao lado, a cena de "Os Comedores de Batatas" me encarava de forma escura. Aquela pintura, por algum motivo, me causava uma leve sensação de angústia todas as vezes em que eu a via. Me senti na obrigação de lhe retribuir a resposta.
  - Eu me chamo Tyler, a propósito- Revelei, me levantando, vendo como o chão estava limpo- Acho que fizemos um ótimo trabalho limpando isso- Comentei, vendo ele se erguer e se prostrar ao meu lado, passando a mão pelo cabelo.
  Ele riu de canto, se voltando para mim.
  - Sério, não sei como agradecer por isso- Disse- Foi muito legal o que você fez. Mostra que você não é uma pessoa escrota- Falou, rindo ainda mais com o fim de sua frase.
  Sorri abertamente, sacudindo a cabeça e em resposta apenas lhe dizendo:
  - Sério, não foi nada. Apenas lhe dei uma mão.
  Josh colocou as mãos nos bolsos, olhando para os pés, enfiados em All Stars vermelhos surrados. Sua meia era listrada, notei. Ele ergueu o olhar, percebendo meus olhos nele. Desviei o rosto para uma pintura ao lado, indo até ela, tentando de todas as formas fazer parecer que estava torta e que eu apenas a endireitava. Ouvi um riso contido por sobre o ombro, então me afastei do quadro, de surpresa batendo contra o tronco do garoto, parado logo atrás de mim como uma estátua do período helenístico. Me apoiei em seu tronco, colocando minhas mãos sobre seu tórax, vendo como suas mãos estavam em minha cintura, firmes, postas ali de forma veloz ao me ver prestes a cair. O toque era quente, enviando calor à minha pele, mesmo através do tecido. Nossos olhos se cruzaram por um segundo, antes de eu me afastar rápido. Ele sorria, fazendo o piercing em seu lábio inferior subir com o movimento, brilhando perigosamente em um reluzir metálico. Seus olhos avistaram por sobre mim a obra no expositor, e ele logo se pôs a me interrogar, tentando afastar o ocorrido recente de nosso encontro, soando um tanto desconcertado.
  - Hum... Bem...- Ele procurava algo para se sustentar. Qualquer coisa que pudesse quebrar aquele silêncio constrangedor- Qual o nome deste aqui?- Indicou o quadro mais próximo.
  Me senti aliviado por perguntar algo que eu soubesse responder.
  - Se chama "Lírios"- Disse, caminhando ao seu lado, enquanto ele olhava interessado para as obras ao nosso redor.
  - E aquele?- Apontou para uma obra com tons de laranja, amarelo e pontos em azul.
  - "A Vinha Encarnada"- Falei, prontamente.
  - Aquele ali é meu preferido- Comentou, apontando para uma das obras mais conhecidas de Van Gogh- "Noite Estrelada", não é?
  Abri um sorriso em meus lábios, me divertindo com a forma como ele reconhecia o quadro, da mesma forma que uma criança demonstrando o que havia aprendido na escola.
  - Isso mesmo- Afirmei.
  Ele sorriu, feliz consigo mesmo.
  - Tem algum outro quadro dele que você goste?- Perguntei, cada vez mais me afundando naquela conversa sobre meu pintor preferido.
  - Aquele com os galhos sobre um fundo azul- Comentou, olhando ao redor. Os olhos brilhando ao avistá-lo- Ali está.
  Nos aproximamos, chegando perto do expositor.
  - "Amendoeira em Flor"- Revelei- Gosto deste também. Bem, deste e de todos os outros.
  Ele me lançou um olhar curioso, mas voltou a olhar para o quadro, imerso em seus próprios pensamentos.
  - Não foi Van Gogh que cortou a orelha?- Questionou, me fazendo olhar para ele.
  - Sim, mas cortou apenas parte dela, não por completo- Falei.
  - Por que ele fez isso?
  - Ele tinha surtos psicóticos, e era um homem realmente perturbado. Um dia acabou por brigar com um amigo, também pintor, chamado Gauguin, e durante a briga cortou a própria orelha em um de seus surtos- Disse, em um tom de voz ameno, como se contasse uma fofoca.
  - Ele parecia estar muito sério em um de seus autorretratos- Assumiu ele.
  - Era apenas o jeito dele.
  - Como se interessou tanto por ele?- Me perguntou ele.
  Pensei, tentando achar a resposta. Era complicado dizer que cresci rodeado por arte por ser filho do curador, e eu também não queria que ele pensasse que eu era um filho de papai que vivia em museus. Lembro de ficar horas em um daqueles bancos, olhando para todas aquelas pinturas e pensando em Van Gogh pintando-as. Imaginando como seria aquele homem pessoalmente, em seus modismos e jeitos. Quando criança, me recordo de ficar trancado em uma das salas com ambiente regulado para guardar os quadros. Naquela sala estavam guardadas as obras dele, e ao invés de gritar por socorro, eu acabei por dormir ali, rodeado por aqueles quadros. Fui encontrado no outro dia por um historiador amigo de meu pai.
  Notei o olhar inquieto de Josh em mim, aguardando a resposta.
  - Bem, é uma longa história- Declarei, sem acrescentar mais nada- Acho que eu deveria ir. Faltam duas horas para a exposição.
  - Não- Disse ele, temendo ao notar meu olhar confuso- Quero dizer, vamos ficar mais um pouco. Não é sempre que se tem a oportunidade de uma exposição guiada por um especialista em Van Gogh- Falou. No fundo, adorei ouvir o nome dele ser pronunciado por seus lábios.
  - Acho que posso adiar isso mais um pouco- Comentei sorridente.

Among Van Gogh's Flowers; [joshler]Onde histórias criam vida. Descubra agora