Pulsos

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Queridos pais,

Bem.. eu nem sei por onde começar. Acho que essa vai ser minha carta libertadora, já que sou um livro fechado. Mas vocês sequer terão a chance de lê-la.

Nem sei por onde começar. E talvez vocês se perguntaram ou se perguntam até hoje, o motivo de eu ter me tornado uma pessoa calada de uma hora pra outra. Na verdade, há várias razões, mas são duas as principais.

Primeiro, foi a chegada de minha irmã. Sim, a mesma. Não.. eu não a odeio. Pelo contrário, eu a amo. Mas vocês começaram a dar toda atenção para ela, e se esqueceram completamente de mim. Eu achei que tinha algo de errado comigo. Eu tentava falar algo importante pra escola, mas vocês respondiam "espera um pouco, vamos cuidar disso", eu tentei falar coisas importantes, mas vocês estavam com a Nina no colo, pois provavelmente ela estava chorando. Eu também estava chorando por dentro, com um riso por fora.

Bem, esse pode até ser um motivo bastante idiota, e o segundo ainda mais. Mas parece que problemas pequenos na cabeça de um adolescente são como monstros enorme.

Segundo, um pouco mais complexo e envolve toda a minha formação. No ensino fundamental eu sempre fui chamado de mulherzinha ou bicha. Ensino fundamental sempre contribui diretamente na nossa estrutura, não é? Eu tentei falar com vocês sobre isso, a primeira vez vocês foram até a escola, mas na segunda vocês falaram que era apenas paranóia minha.

Isso machucou.

Um tempo depois, eu descobri que vocês também concordavam com os que riam de mim.

Isso me machucou mais.

Eu acreditava que as únicas pessoas que acreditavam em mim eram vocês. Mas não era verdade.

Eu cresci, e bem.. como esperado, todos começaram a de certa forma me cobrar um relacionamento. Na verdade, havia um nó na minha garganta. Eu sempre tentei falar com vocês que havia algo errado comigo. Sim, eu considero algo errado, vocês me criaram assim.

Eu passei a odiar mais e mais a mim mesmo por ser tão diferente do normal. Eu só queria ser uma pessoa normal, com seus problemas normais. Ouça, papai, eu não pedi pra nascer assim. Mas queria lhe pedir desculpas por ter sido assim.

Mas no final das contas eu me tornei o que vocês tanto falaram e riram, e me tornei o que você, papai, mais temia.

Eu fui pro ensino médio, e a pressão de fato começou. Minha cabeça não andava bem. Notas baixas. Paixões não correspondidas. Responsabilidades.

Eu não tinha nada que eu era bom de fato, ou vocês não me ensinaram a ver minhas qualidades claramente, apenas meus defeitos.

De qualquer forma, eu só queria me desculpar por ter sido tão fraco e cedido tão rapidamente. Se vocês um dia chegarem a ler isso, saiba que amei muito vocês, mas há uma linha tênue entre amor e ódio, não é mesmo?

A cada corte no pulso, lembrarei de cada momento seus, seja ele bom ou ruim. Que a dor preencha meu peito e a sensação de morte consuma minhas veias, e que enfim minha dor cesse.

Seu filho querido, talvez não tão querido

nóOnde histórias criam vida. Descubra agora