Yugyeom deixou a fumaça do cigarro escapar de dentro de si, espalhando a densidade tóxica pelo cômodo. No meu canto, quietinho, eu lia uma revista que falava sobre buracos negros, algumas vezes espiando por cima das folhas apenas para vê-lo de olhos fechados com seus fones de ouvido. Nós raramente ficamos no dormitório, ambos gostamos de sair com os amigos e voltar de madrugada, quando o outro já dorme. Às vezes parece até que revezamos os dias da semana para que não nos encontremos ao passar pela porta. Hoje, contudo, eu e ele estamos no dormitório ao mesmo tempo. É estranho tê-lo aqui, mas é mais estranho ainda me sentir assim sobre alguém que mora comigo. Divido o quarto com ele há dois anos e nunca paramos realmente para conversar ou nos conhecermos melhor, apenas convivemos sem realmente coexistir — ou é o que eu pensava até então.
Ele faz artes e às vezes usa as paredes do quarto de papel para suas pinturas — já até me pintou, segundo Youngjae, mas eu não acho que aquele garoto desenhado no canto da parede seja um retrato meu —, eu curso filosofia e me vejo aplicando vários conceitos distintos para explicar a sua existência. Mesmo que não exista diálogo entre nós, há certamente uma conversa. Eu nunca parei realmente para tentar entender o jeitão artístico e alternativo de Yugyeom e sei que ele também nunca tentou compreender todo papo filosófico e racional que às vezes expresso em textos que perco pelo dormitório, mas nós meio que admiramos um ao outro em silêncio. Os desenhos cheios de significados nas paredes do quarto me fascinam quando vou dormir assim como as palavras que deixo pelo chão sempre acabam dentro da pasta de esboços dele, aquela que eu sem querer derrubei e vi o conteúdo.
Youngjae, com sua pose toda cheia de misticismo, diz que nós dois somos almas gêmeas. Severas vezes entrou no dormitório e disse que ambos cuidávamos um do outro em silêncio, como quando Yugyeom deixa meu sabor de sorvete favorito no congelador ou como quando eu deixo café pronto pela manhã para mais de uma pessoa. Eu, com toda minha pose cheia de racionalidade, respondo que apenas faço por precaução, afinal vai que eu quero mais café? Contudo minhas palavras não enganam nem a ele nem a mim. Foi a partir daí que comecei a me perguntar como sei tanto que Yugyeom gosta de café e como ele descobriu que eu adoro sorvete de morango com pedacinhos de chocolate. Meu lado extremamente cético não me deixa crer, entretanto às vezes penso enxergar o que Youngjae diz.
— Como eu sou mal educado — ouço a janela ranger ao meu lado, despertando-me do transe que vivia — Eu deveria ter ido fumar na varanda, mas perdi o costume.
Vejo Yugyeom derrubar as cinzas do cigarro para fora do dormitório, uma careta está formada em seu rosto.
— Está tudo bem, eu não me importo com o cheiro — dou de ombros aparentando desinteresse, logo voltando a fitar minha revista — Na verdade, até que gosto.
Ouço ele rir. É a primeira vez que vejo ele exclamando alguma coisa depois de um bom tempo.
— Como consegue gostar do cheiro? Todos odeiam.
Dou de ombros, sorrindo ameno.
— Acho que sou acostumado.
Yugyeom de repente se senta ao meu lado na cama, esticando as pernas longas que só ele tem. Não é estranho para nenhum dos dois que ele faça isso, mas é justamente tal fato que deixa as coisas ainda mais estranhas. Ele espia o que eu leio com os olhos rasgados e bonitos, parece analisar tudo sem realmente entender nada, o que me faz rir baixinho. Sinto os dedos longos adentrarem meus fios negros, relaxo sobre seu toque. Ele faz carinho com uma mão enquanto com a outra termina seu cigarro, e eu quase dormindo termino de ler aquilo que comecei há uma hora atrás. Parece normal para nós dois que as coisas sejam assim, é como se conversássemos por pinturas e textos. Assim que esse pensamento me vem a mente me viro e o olho, mas perco-me em algum lugar porque imediatamente fito seus lábios próximos a mim. Sem seus fones de ouvido ele está mais atento, contudo não me fita, parece estar ciente do que faço mesmo que não me veja.
— Você, cheio de filosofia, com certeza sabe que o lar é o reflexo do coração, certo?
— A mente e os sentimentos provocam estímulos externos que determinam a maneira de viver — digo fechando a revista por um momento, fitando-o — Taoísmo.
— Certo, é algo assim que Jackson me disse — sorriu, voltando seu olhar para mim — Ele é chinês, provavelmente há relação? Ou às vezes eu que estou viajando longe demais?
— Na realidade não me admira ele ter te dito isso, o que expliquei tem relação com a arte milenar chinesa Feng Shui.
— Tão inteligente — elogia com um sorriso pequeno, mas de certa forma grandioso quando paro para analisar o que está por trás dele.
Volto a abrir a revista, dessa vez sentindo minhas bochechas esquentarem com seu elogio.
— Eu gostei daquele desenho que você fez perto da porta — digo de repente após algum tempo, apontando para a arte do mais novo — É tão bonito, cheio de emoções, mas estranhei um pouco porque ele está distorcido.
— É expressionista — explica bagunçando meus fios com um sorrisinho bonito no rosto — Arte de gente inquieta, gente extremamente emocional como eu.
Quando volto a fitá-lo sinto que tudo que ele diz sobre si mesmo é verdade. Yugyeom não é como eu, ele não esconde nada que pensa e deixa tudo bem claro mesmo que não possa usar palavras. Conheço alguns de seus amigos, eles frequentemente me cumprimentam, são todos como o Kim: livres, espirituais e cheios de conceitos malucos que não me deixam desviar o olhar deles. É tudo tão diferente de mim, mas tão encantador. Pergunto-me constantemente como fui acabar dividindo o dormitório com alguém tão especial como ele.
— O que é isso, Jinyoung? — diz aproximando-se de mim, perigosamente deixando seus lábios próximos do mim.
— Singularidade? — ele assente — Bem, matematicamente falando é um ponto no espaço onde a densidade é infinita, onde o tempo para e as leis da física conhecidas não valem absolutamente nada.
— O tempo para? — disse admirado, me olhando nos olhos de forma bonita.
— Sim, fica dentro de um buraco negro — encolho-me com sua presença, sentindo o coração bater mais forte.
— Que interessante — soa sincero aos meus ouvidos, ainda mais depois que seus olhos confirmam.
— Muito interessante — concordo, voltando a minha postura inicial.
Yugyeom volta a se aproximar, dessa vez focando-se especialmente em mim. Sou cheio de teorias carregadas com racionalidade, procuro entender a mente humana e como ela funciona, como pensa, como precisa agir. Ele não. Ele gosta de algo diferente, acredita em contos de países nórdicos, usa drogas lícitas que evito e curte desenhar nas paredes de um quarto alugado. Somos opostos, mas como Youngjae diz, almas gêmeas. Não combinamos, não nos entendemos, não tem aquele brilho em volta de nós, não há algo apaixonante que torna-nos mais parecidos como um casal normal, contudo é justamente isso que nos faz ainda mais especiais dentro do espaço.
E os lábios dele, ao contrário de todo o resto, se encaixam com os meus quase que perfeitamente.
Uma semana depois, quando entrei no nosso quarto, vi escrito na parede em cima de um desenho expressionista que representa nós dois a palavra singularidade. O nosso lar é muito mais que um reflexo do nosso coração.
YOU ARE READING
Singularidade
FanfictionEu nunca parei realmente para tentar entender o jeitão artístico e alternativo de Yugyeom e sei que ele também nunca tentou compreender todo papo filosófico e racional que às vezes expresso em textos que perco pelo dormitório, mas nós meio que admir...