Estela, de estrela.

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O Ballet da Centopeia


"Entre todas as noites, a Lua hoje está mais bela;

A venera lá dos altos céus.

Ao léu, a bailarina espera o barquinho de papel voltar

Ela e o mar, antigo caso de amor

Os passos na areia vão se perdendo e o marinheiro,

morrendo

A Lua se embeleza com a dor dos apaixonados."



Algo súbito, quase não sentiu, num instante estava segura dentro de um sonho bom, bonito, onde seus desejos realizavam-se em passes de mágica e pela porta o medo não entrava, e então, acordara antes que pudesse perceber. Estela, de estrela, estava presa à uma incerteza que se tornaria éons, acompanhando-a e sufocando pouco a pouco, pois já sentia a falta do fôlego e o tremor nas mãos – além do medo que parecia cegá-la enquanto tentava focar a visão. Não existia, infelizmente, mais nada que pudesse enxergar como antes.

As flores, mortas. As árvores, sem frutos e com galhos secos. Tudo o que conhecera havia deixado de existir...

O mar, no entanto, permanecia igual. As ondas estavam revoltas àquela noite, como se gritassem impropérios para a lua cheia, e cada grão de areia transformando-se em testemunha do caso de amor não resolvido, porque sua mente insistia em criar histórias para tudo, sobretudo, para o que estava diante de seus olhos em processo de metamorfose constante, não muito diferente de si, que mudava sempre que podia – e quando não podia – para receber uma nova estação, mas já não fazia sentido. A Primavera assistiu, impotente, o esvair da beleza. O Verão começou a esfriar, Outono deixou para trás o tapete que estendia no chão, deixando em evidência a sujeira mundana, o Inverno antes temido, amoleceu, derreteu-se. À esmo o universo se perdia – ela era o universo quando sorria.

Foi numa dança sem par que se encontrou. Um ballet.

As lágrimas escorriam, riscando as faces de bochechas coradas pela cólera, um trava-línguas para brindar... Não tinha brindes, sem motivos para brindar. Não parecia mais um corpo movendo-se nos passos ensaiados, era uma concha, havia se transformado em uma concha vazia – um processo lento regado à muitas tristezas e dias estressantes. Está nas suas mãos, o controle é seu, Estela; o psicólogo dissera, observando sua vida, seu caos interior, com os olhos clínicos de um gavião. Sempre fascinada por olhos, sempre fascinada por tudo. Os seus, analíticos e chorosos, donos de um castanho-escuro que desnudava o mar, o mundo, enxergava lá embaixo, a misteriosa profundeza encantadora. Todos deveriam contemplar os portões de Atlântida. Mas o que estava pensando?

Estela, de estrela, estava sozinha com seus medos. Enquanto dormia, de pé ao lado de sua cama, estava o homem de terno branco e olhos vermelhos – daí veio o fascínio por olhos, os seus e de outrem, os Dele serviram para hipnotizá-la ainda na infância. Por vezes, fingia dormir para não encará-lo. Quem deseja encarar seus demônios, afinal? Agora, porém, o medo permanecente deixava-a mais forte para suportar o vendaval, enquanto dançava o vento lutava para a derrubar na areia macia e morna. Estava mais forte, mais enérgica. Era a sua última dança e precisava encerrar com perfeição.

Cada estrela, as milhares de estrelas, convidando-a à voltar ao pó, e o mar, tanto traiçoeiro quanto amigo, chamava-a para enterrar-se consigo; ser tragada por suas ondas famintas em mapear novos pulmões. Encher-se-ia de água salgada, porque era toda água salgada e areia: uma pérola inacabada.

Estava em erosão.

Pouco a pouco ia morrendo. Pouco a pouco, Estela ia vivendo. Nada muito poético se pensarmos bem, ela queria dançar e o mundo quebrava seus pés. Seus pés de bailarina; centopeia.


O Ballet da CentopeiaWhere stories live. Discover now