Minha Amiga Ressaca

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Melodee entrou no próprio quarto furtivamente. Era tudo ou nada. Aparentemente, ela estava sozinha. Assim que fechou a porta, fez questão de trancá-la e correu para sua estante de livros. Era uma estante de respeito, abarrotada de títulos clássicos e contemporâneos, o nome de autores diversos preenchiam as centenas de lombadas coloridas. Mas, naquele momento, pouco importava a quantidade de livros emparelhados, ela só precisava de um. Que tivesse mil, cem ou meia dúzia, ela só precisava do livro certo. Sabia que, se parasse para pensar em qual pegar, não daria em nada, sairia frustrada mais uma vez. Fechou os olhos, cantou um uni-duni-tê muito aleatório e deixou a magia da estante levá-la ao livro certo. Arrancou o livro da estante com desespero. Era um livro simpático. Nem lembrava mais se tinha comprado ou ganhado ou roubado aquele exemplar. Para falar a verdade, não fazia ideia de por que quis ler o dito cujo. Mas o abriu mesmo assim.

- Mas, amiga, já?

Melodee tentou ignorar a voz que ouvia atrás de si.

- Assim, nada contra, nem estou te julgando, mas você já se recuperou do último livro? Nossa, foi tão triste. Não tá rolando nem um luto aí?

A intrusa não pararia de falar, e assim seria impossível sair daquela fossa. Melodee sentiu-se obrigada a interagir.

- Faz duas semanas desde o meu último livro.

- Você acha muito? Você chorou horrores no final! Devastadíssima. Aquele era um livro tão perfeito, será que algum outro supera? Quer saber minha opinião?

- Não.

- Nenhum supera.

- Não é verdade.

Mas, meu Deus, Melodee achava que a Ressaca Literária podia estar certa. A Culpa é dos Agrotóxicos foi um livro tão impactante, tão apaixonante, tão ecológico. Ela adorava tudo que era ligado ao meio ambiente, mas o livro tinha quebrado todos os paradigmas narrando um romance lindo sobre essa temática. O autor, João Verde, brincava com as palavras, brincava com os personagens, brincava com o seu coração para, no final, ficar claro que a culpa era realmente dos agrotóxicos. Como ela odiava agrotóxicos! Graça e Guga não tinham culpa de nada! COMO JOÃO VERDE PODIA FAZER UMA COISA DESSAS? Melodee não sabia lidar. Suspeitava que o livro era, na verdade, uma fanfic sobre ela mesma, porque tudo naquelas páginas imitava a vida dela.

- Esse aí na sua mão nem deve ser tão bom. Uma blogueira não fez uma resenha negativa dele um dia desses?

- Fez, mas... Era só a opinião dela – Melodee estava decidida a não perder a batalha dessa vez.

- Olha, querida, conselho de amiga: Está passando um programa ótimo na TV.

- Hoje é domingo.

- Dia de dormir o dia inteiro! Vem, arrumo sua cama.

- Ressaca, me deixa! Eu só quero ler alguma coisa.

- Você até me ofende. Pra você, eu sou Rê, miga.

- Jesus. Como você entrou aqui se eu tranquei a porta? Isso é invasão de privacidade!

- Vamos nos focar no que interessa: esse livro chato na sua mão. Me dá!

Rê tentou puxar o livro da menina, mas Melodee afastou a mão bem a tempo e correu para o outro lado do quarto.

- Rê, esse livro é ótimo, na verdade! Nossa, estou doida pra ler – Melodee abriu o livro desesperadamente na primeira página e tentou ler as primeiras linhas.

Os personagens começavam conversando sobre o tempo.

- UAU. Esse livro promete, hein, gata – Ressaca surgiu dando uma olhada sobre seu ombro – Promete ser tão divertido quanto programas de entrevista apresentados por ex-jornalistas.

Melodee tentou não se abater e continuou lendo, embora Ressaca fosse muito sagaz.

- E esse tanto de parágrafo sem diálogo? Dá até preguiça ler a página toda (...) Esses erros vergonhosos na revisão cagam até a melhor das histórias, melhor você deixar para ler em inglês (...) Ele não já falou isso? Meu Deus, esse protagonista não sai desse mimimi? (...) Já tá na página 20? Livro tão modorrento que até dormi (...) Tá parecendo novela, né, miga? O mistério está na cara, nem precisa ler até o final. Melhor você largar esse livro pavoroso e ler um resumo na internet (...) A propósito, o Tumblr está MARA hoje, pena que você está agarrada com um livro, perdendo tudo...

Era verdade. Era tudo verdade. Detestava os erros que passavam nas revisões, queria mesmo dar uns tapas no protagonista por ser tão mimizento, já estava na cara que a mulher dele fugiu com o atendente de telemarketing porque ele era um mala e, sim, meu Deus, o Tumblr devia mesmo estar viciante, com todos aqueles gifs maravilhosos que Melodee estava deixando de reblogar. O livro definitivamente não era perfeito, mas...

- Os parágrafos não são ruins.

- Quem você quer enganar, miga?

- A gente fica com preguiça, mas a maioria é bem interessante.

- Humn... – Rê estava com uma sobrancelha erguida.

- E tem uns coadjuvantes ótimos – Melodee sorria – O atendente de telemarketing inclusive recicla o lixo!

- Uau, que interessante. Deveriam informar isso na orelha do livro.

- E o final nem sempre é o mais importante, quero ver como os personagens vão chegar até lá. O Tumblr pode esperar até eu descobrir.

- Você que sabe, ó, lavo minhas mãos. Eu tento de alertar, você não está pronta, não vai ser igual ao último. E tem a blogueira, você não pode esquecer a blogueira, ela acerta sempre. Não sei o que eu faço com você.

- Só cala a boca que o negócio está ficando bom.

Melodee estava na página 107 e nem viu em que momento a Ressaca Literária foi embora, mas ela foi. A vozinha irritante não estava mais azucrinando. A porta do quarto continuava trancada. Como a Ressaca ia e vinha continuaria sendo um dos mistérios do universo, mas, por hora, não precisava mais se preocupar.

Melodee tinha um livro para terminar.

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