Capítulo 1

15 0 0
                                    

No instante em que quatro enormes gotas d'água atingiram sua testa, Negro João acordou em sobressalto. Num gesto instintivo de quem lutara a vida toda pela sobrevivência, envolveu, com sua enorme mão direita, a pistola presa ao cinturão.

Agir antes de pensar. Para muitos de seus colegas, esse fora o lema que os mantivera vivos num cotidiano de guerra. Mesmo enquanto dormia, Negro João ouvia claramente o estrondo dos canhões, o barulho produzido pelo impacto das balas disformes contra o solo, o cheiro e os grãos de terra que se perdiam no ar. Mas, o pior de tudo, de tudo mesmo, era o cheiro de sangue.

Várias foram as vezes em que lavou com insistência insana seu corpo coberto pelo sangue dos bugres, como seus camaradas chamavam os soldados paraguaios. Porém, ainda que sua pele negra estivesse limpa, o cheiro acre do sangue permanecia, penetrava-

-lhe as narinas largas e tomava de assalto todos os cantos do cérebro. Mesmo que voltasse vivo ao Brasil, acreditava que o cheiro nojento de sangue nunca sairia de suas narinas — e de seu coração.

Às quatro gotas que acordaram Negro João, seguiram-se outras tantas que molharam seu rosto, o peito nu e o forte tronco parcialmente coberto pelo uniforme surrado do exército imperial.

Negro João percorreu os olhos pela sala ampla. Os sofás de couro trazidos da Espanha e a decoração que mesclava o gosto aristocrático e rústico ainda estavam lá, intactos.

Ergueu os olhos para o teto e constatou que as gotas caíam por uma fresta no forro do casarão. Lá fora, chovia a cântaros. Agora que estava acordado, notara que o barulho da água caindo sobre o teto semicoberto por telhas produzia um barulho ensurdecedor. Era realmente incrível que tivesse conseguido dormir tão profundamente com um barulho tão estrondoso.

Ele e a menina haviam chegado à fazenda no final da tarde do dia anterior. A propriedade não era muito grande, mas apre- sentava restos de um lugar que, um dia, fora próspero

e rico. O interior do Paraguai era pontilhado por propriedades do tipo, a maioria servindo para a plantação de algodão e mate ou criação de gado. Porém, agora tudo não passava de um cemitério preenchido por lembranças de uma prosperidade morta.

Negro João vira muito do cenário rural paraguaio. Foram inúmeras as vezes em que passara por propriedades como aquela. Abandonadas, saqueadas. Seus donos, diziam, fugiram para a capital ou para a Argentina. Outros, no entanto, haviam tido menos sorte e morreram. O preço da guerra.

A única coisa em comum entre essas duas realidades é que, invariavelmente, estes latifúndios, um dia pujantes e prósperos, haviam sido saqueados tanto pelo exército paraguaio quanto brasileiro. A necessidade de sobrevivência fazia o homem cometer atos insanos.

Mas ele não era saqueador. Caminhara dois dias seguidos sem dormir. Várias vezes teve que carregar a menina no colo. Noutras, teve que segurar a irritação pelo choro contido da garota.

Quando avistou a vaca magra, de aspecto doente, caminhando rente à cerca de madeira tombada, não teve dúvidas. Tinha que comer. E mais, tinha que alimentar a menina. Ele era um homem feito, escravo, talhado para sobreviver a uma existência de dificuldades. Mas a garota não tinha mais de dez anos. E crianças têm que comer.

Para ele, já fora surpreendente a guria conseguir andar aquela distância toda, sob sol e calor, sem emitir um único som de reclamação. Ela quase não falava, e, quando cuspia poucas palavras, falava numa língua que Negro João não compreendia. Após três anos no Paraguai, conseguira compreender um pouco de espanhol, mas não entendia por que o povo que vivia nas localidades mais ermas falava um idioma tão estranho, tão diferente. Língua de índio, certa vez explicara um oficial.

Menina / MitacuñaWhere stories live. Discover now