Laços

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Odiava a prima.

Desde criança Micaela tinha um asco inexplicável por ela.

Não que a outra fosse, de alguma forma, repulsiva ou desagradável.

Era bonita. Nada exagerado, ou notável, apenas bonita. Muito simpática e educada.

Mas algo na solicitude da outra deixava Micaela... Não sabia determinar a irritação fora do normal.

Por causa dessa... "Implicância" - era como havia se acostumado a rotular - as férias em Paquetá por vezes beiravam o limite do insuportável.

Todos os dias, a mesma ladainha:

- Porque não vai com sua prima?

A mãe e a tia, irmãs sempre tão inseparáveis, sequer desconfiavam, que dirá concebiam, o que se passava.

Aquilo que Micaela realmente sentia e pensava.

Nada a faria confessar.

Tentava não demonstrar. Agarrada num livro – sempre tinha um debaixo do braço – acompanhava a outra, seguindo-a de bicicleta até a praia, onde colocavam as cadeiras lado a lado.

Não se falavam. Acordo tácito desde uma idade tão precoce que Micaela sequer lembrava.

Ficavam ali, qual frango assado, mudando de posição para queimarem por igual.

Iam na água se revezando. Sem precisarem combinar.

Depois voltavam para casa, onde as mães as esperavam para almoçar.

Inevitavelmente eram questionadas:

- Estava boa a praia?

Com uma precisão incrível, como se pressentissem de quem era a vez de falar, uma das duas respondia:

- Estava legal.

Tomavam banho uma depois da outra. Cruzando-se no corredor apertado.

Passavam a tarde fazendo nada. Sentadas na varanda, cada uma em seu mundo particular.

Micaela devorando algum livro. A prima fazendo a unha, ou enrolando o cabelo. De vez em quando parando para mudar a estação do rádio.

De noite o baile do Iate.

Assim que atravessavam a porta do clube, se separavam. Faziam partes de grupos diferentes.

Quando se dignava a pensar nisso, Micaela inevitavelmente concluía, com um certo sarcasmo: "se entrassem juntas em qualquer lugar, a prima escolheria como amigos exatamente o tipo de pessoa que Micaela jamais conseguiria gostar."

O que acaba fazendo-a completar: "se existem almas gêmeas, também devem existir almas que como água e azeite, nunca se misturariam."

Foi numa noite no fim do mês. Micaela conversando animada com as amigas, quando uma delas disse:

- Sua prima está namorando?

Estranhou a agressividade do próprio tom de voz ao perguntar:

- Do que você está falando?

A amiga respondeu apontando:

- Olha lá.

Lentamente, com um sentimento desconhecido, como se a demora pudesse poupá-la... Micaela virou na direção indicada. E viu a prima com um rapaz.

Não estavam se beijando de forma comportada. Muito pelo contrário. Os corpos grudados se esfregando, visivelmente excitados. As bocas se engolindo, de um jeito que tornava impossível determinar onde uma começava e a outra terminava.

Foi instintivo. Aproximou-se do casal, e sem pensar, muito menos questionar o que fazia, puxou a prima pelo braço.

A outra a fitou com um brilho nos olhos que Micaela jamais havia visto.

- Vem comigo.

Sem hesitar, a prima obedeceu.

Cada uma em sua própria bicicleta. Micaela por vezes olhando para trás, para conferir se a prima estava mesmo a seguindo.

Em casa, as mães já estavam dormindo.

Tiraram os sapatos para não fazer barulho. Esgueiraram-se num silêncio absoluto até o único lugar seguro.

Foi a prima que fechou e trancou a porta do banheiro.

Aproximou-se de Micaela seriíssima, e num sussurro, inquiriu:

- Percebeu enfim?

Confusa, perdida... A compreensão finalmente vindo... Micaela ainda gaguejou um inseguro:

- Percebi o quê?

Foi com um sorriso malicioso que a prima sussurrou de volta:

- Você sabe muito bem.

Antes de segurar Micaela pela nuca e capturar os lábios dela com os seus.

Como sempre que a outra a tocava, a pele de Micaela se arrepiou inteira. Porém, pela primeira vez, ela conseguiu enxergar o verdadeiro porquê.

Quando as bocas se separaram - apenas por um breve momento, para que pudessem respirar – Micaela provocou:

- Me diz. Eu não sei.

A prima demorou um tempo para responder.

Começou com as mãos. Subindo por debaixo da saia de Micaela, derrotando a barreira da calcinha. Satisfeita com a falta de resistência quando transpôs muito mais do a peça íntima...

Entre os gemidos, com uma entrega inteiramente recíproca, a prima fez questão das palavras. Como se estas pudessem tornar ainda mais real o gesto em si:

- Você é minha.

Selando o que agora as duas sabiam: que sempre havia sido, e sempre seria assim.

FIM

Esse conto é parte integrante do livro de Contos de Literatura Lésbica BOLEROS DE PAPEL:
http://www.diedraroiz.com/p/livro-boleros-de-papel.html


Laços - Conto Lésbico (one shot)Onde histórias criam vida. Descubra agora