O que você quer ser?

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Depois de uma ligação do meu pai, eu e Lavínia fomos para o antiquário que lhe servia de base. Como sempre, meu pai estava atrás do balcão lendo. Por mais estranho que possa soar, daquela vez ele estava lendo As Aventuras de Pinóquio. Só quando encostamos no balcão foi que ele largou o livro e, com a seriedade típica dele, ajeitou os óculos para dizer:

— Espero não ter interrompido nada.

— Na verdade você me livrou a cara – Lavínia disse. – Eu já estava ficando de saco cheio daquele filme que o Daniel estava me fazendo assistir. Além disso, se você ligou é porque tem um caso e se tem um caso eu vou receber, então tudo bem.

Lavínia olhou para mim com um sorriso de quem sabe que está certa esticado em seu rosto.

— Acho que não dá para tentar argumentar, dá? – eu disse.

— Sem chance, garoto – ela respondeu.

Abaixei os ombros e sorri.

— E então – eu perguntei ao meu pai – o que está acontecendo?

— Eu tenho ouvido histórias sobre um vendedor de corpos que se mudou para cá. Dizem que ela dá às pessoas os corpos que elas quiserem em troca dos que elas têm. Não soa como uma ameaça direta, mas outro mago na cidade nunca é bom. Preciso que vocês encontrem ele, estabeleçam contato e digam a ele para vir aqui.

— Vamos ser garotos de recado então? – eu disse.

— Um escritor preferiria o termo “contínuo”. Mas, basicamente, sim.  Algum problema?

Abaixei os ombros.

— Tem alguma pista? – perguntei.

Meu pai me entregou um papel com um endereço.

— A pessoa que mora aí pode te ajudar. Ele foi cliente do vendedor. Talvez ele possa te dizer alguma coisa.

Peguei o papel com o endereço e saí da loja junto a Lavínia. Assim que atravessei a porta, porém, notei algo estranho no olhar dela como se algo que ela tivesse tentado esquecer fosse colocado à sua frente.

— Lavínia? – eu chamei.

Ela demorou mais um pouco naquela mesma posição antes de se voltar para mim com um rosto que eu há tempo não via.

— Acha que é verdade? – ela perguntou. – Essa história de vendedor de corpos?

— Provavelmente. Meu pai não ía perder tempo com uma coisa falsa.

— É. Acho que não.

O olhar de Lavínia correu para dentro dela mesma e suas mãos para os bolsos do casaco.

— Um corpo perfeito… – ela murmurou.

Só aí eu entendi o que ela sentia.

Naquele momento, eu tinha certeza que ela estava se lembrando daquele tempo. Toquei-a no ombro e Lavínia pareceu sair de um transe.

— Desculpe – ela disse. – Eu estou legal.

Preferi não discutir. Fomos logo para o endereço marcado no papel. Lá ficava um prédio de apartamentos. Pedi na portaria que chamassem o número 122 e avisei à pessoa que atendeu que estava procurando quem tinha tratado de seu corpo. Não demorou muito até eu e Lavínia estarmos na sala do apartamento. O dono, um homem muito alto e forte, ficou sentado à nossa frente, nos olhando em silêncio.

— Então – ele falou – quem são vocês?

— Estamos procurando a pessoa que te deu esse corpo – eu disse.

O que você quer ser?Onde histórias criam vida. Descubra agora