Régias vitórias

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Texto: Filipe Tassoni

Capa: @LeticiaBlack


Régias vitórias

Duas meninas deitadas, sobre jornais velhos amassados, no segundo andar de uma casa abandonada. Paula ouve algo misturado ao silêncio, fecha os olhos e começa o que parece uma prece. Dá um sorriso mínimo e enfrentando o barulho do vento da noite fria começa:

- Sabe Úrsula, entendo o quanto você passa frio aqui nesta casa velha. Mas olha o lado bom: ao menos você conseguiu um lugar para dormir. Este quarto do segundo andar tem um pedaço de vidro na janela, um sofá velho lá embaixo onde você fica deitadinha tremendo de frio, mas ao menos é um pouco de conforto. Fiquemos juntas. Me abraça aqui! Vamos olhar a lua refletida pelo vidro como se fosse um olho de prata brilhando. Engraçado, com todo aquele trânsito lá fora aqui do segundo andar quase não ouvimos os carros. Desde que nos conhecemos na estação do trem você me pergunta pela minha infância e sobre minha amiga Nahry. Bem... chegou a hora, então eu preciso te contar algumas coisas sobre ela e sobre mim:

E Paula, abraçada em Úrsula começa seu monólogo com um tom de voz calmo, relembrando a infância:

"Acho que percebi que havia algo errado com Nahry quando eu tinha uns sete anos e eu e minha mãe atravessávamos o rio num daqueles barcos tão comuns lá na minha cidade natal. Parece engraçado hoje, mas levei um baita susto. Pulei para cima de uma folha de vitória-régia e afundei. Precisaram dois outros tripulantes ajudarem minha mãe a me resgatar pois me enredei em diversas raízes que tinha na água. Após a exemplificadora surra que levei de minha mãe comecei a enxergar as coisas com mais clareza. Nahry era mais alta do que eu e sempre andava por cima daquelas folhas. Se era mais alta, deveria ser mais pesada. Quando ela apareceu novamente enquanto eu me banhava no rio já fui logo perguntando como ela conseguia ficar pulando de folha em folha sem afundar. Ela apenas sorriu. Aquele sorriso amigável nunca mostrando os dentes. Lembro que no mesmo dia percebi que o vento também não fazia seu cabelo esvoaçar.

Dias depois, quando minha amiga esquisita apareceu no meu quarto eu já tinha certeza de que ela era um fantasma. Mas não ligava, as outras meninas nunca brincavam comigo. Minhas vizinhas tinham medo de mim, diziam que falava sozinha, então a Nahry me fazia companhia. Após nossos minutos de longos silêncios e sorrisos cheios de larga cumplicidade ela me convidou para nadarmos. Não fui, fiquei com medo; não dela, se era assombração também era minha amiga. Fiquei mesmo com medo da surra de pau que levaria se minha mãe descobrisse que estava nadando sem pedir-lhe permissão e bênção. Naquela época minha mãe trabalhava no hospital da cidade e precisava caminhar pelo meio da mata por quase uma hora para fazer as faxinas naquelas salas imensas e voltava tarde no outro dia cheirando a algo estranho que muito depois descobri ser o cheiro de hospital.

Quando eu tinha uns doze anos, adoeci e conheci o hospital pela primeira vez, além de minha mãe e uma tia só quem me visitou foi Nahry. Passei meses naquela cama sem poder me movimentar muito. Nossa como era ruim. Eu via os dias passarem enquanto médicos e enfermeiros vinham me torturar levando meu sangue e me fazendo tomar aqueles remédios esquisitos. Minha amiga que só eu via ficava do meu lado, muitas vezes conversávamos por toda a noite. As enfermeiras até diziam que eu era um pouco maluca, mas todas gostavam de mim, afinal todas gostavam, e até tinham pena, de minha mãe. Uma noite Nahry me ajudou a sair da cama e me levou até um lugar gelado que tinha gente morta. Uma visão ao mesmo tempo assustadora e excitante.

Por cima das duas mesas tinha dois corpos tapados com lençóis. Nos aproximamos do primeiro e vimos que era um corpo de gente adulta pelo tamanho, dava para ver uma etiqueta pendurada nos dedos dos pés. Mas não consegui ler o que estava escrito. Parecia que as letras estavam ora de cabeça pra baixo e ora invertidas/fora de eixo. Na hora não liguei, Nahry percebeu que eu não conseguia ler e disse que aquele era um moço que estudava para ser padre. Puxou um pouquinho do pano e vi um homem bem novo, quase um menino crescido. Muito bonito. Mas tão branquinho. Tão sem vida que dava pena.

Minha curiosidade me levou ao outro lençol, era bem menor que o estudante para padre, por baixo do lençol escorria na mesa uma vasta cabeleira preta. Mais uma vez tentei ler a etiqueta pendurada no dedão e não entendi o que dizia, parecia que eram letras de uma outra língua e que para ajudar ficavam se mexendo quando eu forçava os olhos. Minha amiga me pegou pela mão e até apertou um pouquinho meus dedos quando me ajudou erguer um pouco o paninho para ver a cara da morta.

Não voltei ao quarto, não quis ver minha mãe chorando. Não voltei à casa de minha infância, achei que sentiria muita saudade. Nahry e eu passamos a caminhar pelas estradas que cortavam as florestas, nadar nos rios. Brincávamos de pular nas folhas de vitória-régia e agora eu sabia o segredo de não afundar. Um dia pegamos nosso rumo, loucas por novidades fomos andando, andando até chegarmos aqui nesta cidade. Até encontrarmos você."

Úrsula que transitava entre estar desperta e sonhando tentou levantar-se...

- Não faz essa cara Úrsula, você sabe porque eu estou lhe contando tudo isso. Vamos lá no sofá, quero te mostrar uma coisa, é triste, mas necessário.


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