Você já se sentiu preso em uma gaiola como se fosse um passarinho perdido e medroso?
Eu já.
Mas certo dia, talvez por livre e espontânea vontade guardada no fundo do peito. Ou por um grande empurrão de um pequeno amigo, eu resolvi esticar as grades da gaiola, colocar minha cabeça para fora e respirar o ar da liberdade e da vida por alguns segundos. Depois disso, não sabia mais o que era estar presa.
Meu nome é Lis, tenho dezessete anos e estou voando pelos ares da vida.
Levantar da cama sempre foi uma grande dificuldade. É como se um corpo gigante e extremamente pesado insistisse em aparecer em cima de mim todas as manhãs. Só que esse corpo pesado triplicou seu peso desde que descobri minha doença. Alcancei meu telefone do criado-mudo e notei uma notificação na tela.
''Seja forte. Sou seu amigo, mas se precisar bater em alguma coisa pode me chamar de saco de pancada''
Sorri. Era Erik, meu melhor amigo. Ele foi o primeiro para quem contei sobre a temida leucemia, pois era o único que eu sentia plena confiança e que continuaria me olhando com os mesmos olhos de sempre. Não com aquele olhar de pena que metade dos familiares e amigos passaram a me lançar depois que descobriram minha doença.
Minha doença. Que sensação esquisita dizer isso. Parece algo bom, único e exclusivo. Dizemos isso quando queremos falar sobre nosso trabalho, nossas conquistas, nossos animais de estimação. Mas minha doença? Como eu queria que ela não fosse minha. Que ela não fosse de ninguém.
Quando você diz para as pessoas que têm câncer, é inevitável, elas vão te olhar de outra maneira. Ou é um olhar de pena ou de admiração. Mas definitivamente, nenhum deles me faz se sentir melhor. Queria que todos me olhassem da mesma forma de sempre.
Hoje é meu primeiro dia de férias. Sim, as piores férias do mundo. Finalmente o terceiro ano chegou ao fim. Meu primeiro dia de quimioterapia iria começar em algumas horas e eu só conseguia pensar nesse peso gigante que estava sobre mim. Eu tenho medo de ficar diferente, pálida, careca e com aspecto de doente. Estou morrendo de medo mas preciso ser forte. Ou pelo menos fingir, é assim em todos os filmes sobre câncer, não é mesmo? A menina descobre a doença mas aproveita seus dias como se fossem os últimos. E na maior parte das vezes é mesmo.
Quando finalmente consigo me levantar, ouço meus pais discutindo no andar de baixo. Todo aquele peso que estava sobre mim minutos antes, voltou como uma pancada forte no estômago. Gritos abafados, palavras que cortam a alma, tudo isso jogado entre essas quatro paredes. Não sei como as paredes aguentam. Ainda não sei nem como eu aguento.
Quando desço as escadas, me arrastando como se fosse uma lesma cansada e abatida, eles cessam a briga e me olham com carinho. O rosto da minha mãe expressa um cansaço extremo, enquanto no semblante do meu pai há apenas uma energia concentrada na raiva. Meu pai está totalmente desconcertado. Depois da notícia — da ''minha'' doença — ele vem tentando camuflar suas brigas com minha mãe. ''Estamos apenas conversando Lis, isso não é uma briga!''. Eu até acreditaria se não convivesse com eles durante minha vida inteira.
— Querida — minha mãe diz me abraçando — O café está na mesa!
Dou um sorriso e me sento diante da mesa. Não olho para meu pai, que também prefere se manter calado. Aquilo parecia um banquete e não um simples café. Tinha bolo, suco, café, pães e vários tipos de queijos e patês. Pelos farelos de pães na mesa, meus pais já haviam se servido. Eu amo e odeio tudo isso. Gosto de receber toda essa atenção, dedicação e carinho, porém não gostava do motivo. Também não gostava dessa mudança brusca de rotina. Meu Deus, é segunda-feira de manhã e estou indo fazer quimioterapia. Estou diante de uma mesa que mais parece cenário da novela da Globo. Meus pais estão fingindo uma relação bonita e harmoniosa. Por quê? É essa a imagem que eles querem que eu tenha nos meus últimos dias de vida? De uma família bonita que prepara um café da manhã espetacular em plena segunda-feira?
Depois que eu descobri minha doença — mais especificamente à duas semanas atrás — meu pai ficou mais quieto do que o normal comigo. Antigamente ele ousava me dizer algumas palavras que sempre terminavam em uma briga curta e três dias de silêncios mortais.
— Já é 7:30, Laura — meu pai disse meio irritado — Precisamos ir agora se não irei me atrasar para o trabalho.
Sabia que aquela fachada de família perfeita não duraria por muito tempo. Ele era explosivo e minha mãe fazia de tudo para aumentar a raiva dele. Minha mãe jogou um olhar furtivo para ele, como quem diz ''Você não pode apressá-la, ela está doente''.
— Já estou pronta! — digo, pegando uma maçã no cesto de frutas — Vamos para o paraíso das agulhas.
Meu pai sorriu e minha mãe optou por simplesmente ignorar a piada. Há dois meses atrás ela provavelmente iria falar para eu ter respeito, agradecer a vida ou simplesmente parar de fazer piadas sobre tudo. Ela odeia minhas ironias em relação à doença. Ela não entende que o ambiente em que moramos e a doença que tenho, são situações pesadas demais para se carregar sozinha, e manter a discrição torna tudo muito pior.
Assim que entramos no carro, peço para meu pai abrir todas as janelas.
— Por quê? — ele questiona e todas as janelas começam a descer instantaneamente.
— Quero sentir o ar entrar pelo meu corpo, antes dele se desmanchar inteiro. — sussurrei. Acredito que nenhum deles tenha ouvido. É melhor assim.

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A Lista de Gael
RomanceA vida tem um valor diferente para cada pessoa. Alguns sabem aproveitá-la em cada suspiro. Outros deixam-a escapar entre os dedos como areia. Lis e Gael se conheceram no hospital, logo após serem diagnosticados com leucemia. Ela tem 17 anos e ele, 8...