Tentei abrir os olhos e não consegui. Não lembrava ao certo de tudo que havia acontecido, mas... a dor... ela me fazia recordar. Eu queria esquecer, eu tentaria esquecer, mas os hematomas não deixariam. Tanto a dor quanto os hematomas sumiriam, mas jamais a ideia remota que um dia aquele homem havia me batido.
E no fim, sobraria apenas uma lembrança sofrida de um tapa na cara, de um grito. Eu nunca teria forças para me levantar daqui, desse chão caído?
Escuto, ao longe, o choro angustiante de uma criança. Meu filho? Está tudo tão embaralhado dentro de mim... Fui atirada de um canto ao outro... não me lembro porque... aquele choro insiste... preciso me erguer.
Tateando, caminhei até o quarto de onde o choro estava vindo. Tentei carregá-lo... não consegui tirá-lo dali.
Quem caiu foi eu. De novo e de novo e de novo.
Deitada ao seu lado, repassei em minha mente a noite anterior. Porque tudo havia começado? Porque fui chutada e esmurrada e agredida na frente do meu filho?
Pelo caos que se encontrava minha casa poderiam supor que ela havia sido arrombada. Mas eu que fui. Minha situação era igual ou pior. Arrombada, golpeada, saqueada. Arrancaram minha dignidade com as próprias mãos. E eu nem sabia porque!
Talvez por causa da minha "natureza", talvez por não querer me "submeter"... era o que diriam. Desaforada, insubmissa, Jezabel, "queixo duro". Mas será mesmo que um murro é uma resposta aceitável para uma palavra "desaforada"?
O choro do bebê era persistente, era agoniado, era dilacerante, mas não cortava meu coração. Não havia mais nada dentro de mim para ser quebrado.
Deitada no chão, olhando para o teto, de olhos (roxos) fechados, eu percebi que não havia mais sonhos dentro de mim, que eu vivia um pesadelo e que ninguém arrombaria a porta para me salvar. Se eu não levantasse e não tomasse conta de mim mesma, eu morreria. Eu e meu filho.
Sim, meu filho ainda chorava. Completamente prostrada no chão, deixei a cabeça pender para o lado para tentar olhá-lo e ver se estava machucado. Ricardinho estava do meu lado, sentado, com um brinquedo em suas mãos e muitas lágrimas em sua face. Estiquei meus braços, com muita dificuldade, e toquei em suas perninhas morenas, tão macias.
Rick estava vestido com um macacão jeans e uma camisa listrada colorida. Estávamos nos arrumando para ir à igreja. Eu cantava baixinho uma música de soul gospel enquanto amarrava seu tênis branquinho. E ele sorria, aquele sorriso gostoso sem dentinhos. Meu bebê tinha um pouco mais de um ano e era esperto e, é claro, sorridente quando estava comigo. O mesmo não acontecia quando aquele homem chegava.
E sempre chegava com sua densa presença, capaz de modificar uma atmosfera. Mas quando sorria, seus dentes iluminavam qualquer ambiente como uma luz branca, falsa e fluorescente. Era o sorriso dele que Rick tinha. Pena que agora os dois sorriam menos.
Ubaldo já chegou dizendo: "- Arrume logo essa criança que não podemos nos atrasar para o culto." E quando ele abria a boca, nossos semblantes se fechavam. Não havia palavras gentis e animadoras para nós. Não havia sonhos naquela casa.
Enquanto eu ajeitava Rick depressa, Ubaldo notou que eu ainda não havia me arrumado.
- Como você é lerda, Jane. Porque ainda está com essa roupa? Você não faz nada direito. Fica fazendo o que dentro de casa?
- Ubaldo, você não estava aqui, como você pode me chamar de lerda sem saber tudo que eu já fiz nessa casa hoje? Quem lava esse banheiro que você toma banho? Quem cozinha sua comida? Quem esfrega o chão que você pisa?
Ubaldo não respondeu, mas dava para ver em sua testa o sangue pulsando. Terminei de passar perfume em Rick e quando estava entrando no banheiro para começar a, finalmente, cuidar de mim, Ubaldo contou, de longe, que Moisés iria conosco para a igreja.
Ah, agora me lembro, foi aí que tudo desandou.
Agora me lembro, deitada aqui, olhando para Rick enquanto ele ainda chora, eu me lembro o que eu gritei do banheiro mesmo:
- O QUÊ?! Aquele cara novamente? Eu não gosto dele, Ubaldo. Eu não gosto nada daquele rapaz. Ele está sempre se metendo aqui em casa, até a TV se acha agora no direito de ligar sem ao menos me pedir....
Ubaldo quebrou o copo no chão. Me assustei. Ele estava apenas bebendo água enquanto eu falava, e no momento seguinte já estava transtornado vindo em minha direção. Não tive tempo de correr, não tive tempo nem de proteger meu filho.
Essa não havia sido a primeira vez, é verdade. Mas cada soco doía como se eu nunca tivesse levado um soco antes. E olha que eu já levei, vários até. Fui pega de surpresa enquanto eu falava, recebi o primeiro soco na boca e caí sobre o box de vidro, que arrebentou. Atordoada, no chão, sangrando, me arrastei até os cacos de vidro, mas quando Ubaldo percebeu minha intenção, ficou ainda mais enfurecido.
Ele pisou na minha mão que segurava os cacos e eu urrei alto. Rick já chorava, sem entender nada – coitado - e não parou mais. Ubaldo abaixou colocando todo o peso do seu corpo sobre a minha mão sobre os cacos, olhou nos meus olhos e disse:
- Você não deveria falar mal das pessoas. É pecado. – falou isso calmamente, enquanto pegava em meu braço e me lançava no canto da parede.
Bati a cabeça no chão e acho que desmaiei. Mas também senti quando ele me chutou na barriga algumas vezes; depois não consegui mais ouvir o choro de Rick. A densidade da atmosfera já não mais existia também. Comecei a flutuar.
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