A Senhora do Tempo

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Eu não estava assimilando. Lembro–me que, desde os meus 8 anos, a professora ensinava na escola e nada. Não entrava na minha cabeça. A maneira como os números eram distribuídos, a conta que teria que fazer, aqueles cálculos, os giros... para não dizer que o esforço dos meus professores foi em vão, ao menos aprendi que o ponteiro menor marcava as horas, o maior e mais grosso os minutos, e o maior fininho os segundos. Ah, esse era magrelo, mas trabalhava mais, coitado! O tempo todo no tic tac, tic tac, tic tac... Ele se fazia notar, marcava sua presença, se tornara referência do relógio, a onomatopéia característica era graças a ele!

Enfim, toda essa reflexão em minha mente pueril e ainda não entendia como se fazia para ver as horas. E esse era um pequeno grande sonho que eu tinha: saber ler as horas em um relógio de ponteiro. Era lindo quando alguém perguntava “Hey, por favor, que horas são?” e a outra pessoa – inteligentíssima pessoa essa - respondia “São três e quinze”, ou, o que eu achava fascinante, a resposta que denotava toda a intelectualidade do ser: “São quinze para as seis.”. Uau, como poderia saber quanto tempo faltava? Que mágico, essa pessoa só poderia ser o senhor do tempo, the lord of time! Eu precisava saber também. Enquanto não aprendesse a ler o código dos ponteiros eu não seria ninguém. E esse era meu grande objetivo de vida, aos 8 anos de idade.

Nada, porém, aconteceu. Era complicado demais para mim. Não fazia sentido. Não dava, eu não era capaz. Impossível. E assim minha vida seguiu frustrada.

Até um belo dia de dois anos depois.

Aconteceu que fomos visitar minha avó, linda dona Valdomira – que Deus a tenha. Muito enrugada minha avozinha, mas sempre com um sorriso – sorria com olhos e dentes – e seu cheiro de fumo. Amava cheiro de fumo! Não sabia o que era, mas amava porque era o cheiro da minha avó. Completamente surda que era, lia os lábios com incrível habilidade e se comunicava melhor que muita gente que ouvia. Ela adorava receber nossa visita. Vivia numa casa simples no Guarujá, litoral de São Paulo. Uma casa simples que tinha um pé de guaraná! Era demais. Me sentia tão bem lá... Minha avó fazia de tudo para nos receber bem... ela estava entre nós e de repente sumia, voltando minutos depois com coisas que havia comprado para o café. Trazia lá um Nescau, porque criança toma Nescau, né. Eu era jovem demais para perceber seus sacrifícios, já tinha a essa altura meus 10 anos, mas ainda não tinha olhos para ver esses detalhes.

Após o café, estávamos ela e eu em seu quarto, quando ela virou-se e começou a remexer dentro do seu guarda roupa. Chamei-a para perguntar ou falar algo, não lembro mais, e ela me ignorou. Chamei novamente e nada. Lembrei-me com culpa e vergonha que ela não podia ouvir e me calei, esperando ela fazer o que estivesse fazendo. De repente virou-se de volta e colocou algo em meu pulso. O esquerdo, claro.     Que linda surpresa!

Olhei e era um lindo relógio de ponteiro. Tinha uma pulseira de gomos prateados e os números todos lá, do 1 ao 12, e todos os 3 ponteiros, como haviam me desenhado por várias vezes na escola, mas mil vezes mais lindo, um milhão!

E a mágica aconteceu. Naquela hora. Olhei e tudo se encaixou. Tudo fez sentido. Três professores tentaram me ensinar, e não conseguiram o feito com eficácia como a minha avó. Ela me dera um relógio mágico. Um que se permitia ser lido e interpretado por mim, uma garotinha de 10 anos. Amei o presente. Talvez minha avozinha tenha me dado seu único relógio. Eu não pensei nisso na hora. Era o melhor presente que ganhara na vida! Agradeci minha linda velhinha. Abracei. Beijei. Ela não sabia o quanto aquilo significava para mim. Ela realizara um grande sonho de uma garotinha. Foi então que tive, naquele momento, uma grande revelação:

Dona Valdomira era a Senhora do Tempo.

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