Capítulo 2

35 1 0
                                    

Capítulo II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada
com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os
Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse
bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam
com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito
que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar
uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha
desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e
completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos
mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal
exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da
tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no
espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve
instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as
virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo
rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-
las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo,
trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram
aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o
bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro
põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas,
ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que
me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de
irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda...
Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram
no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie,
replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do
mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto
gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os
sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele
fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,
ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já
com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a
água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as
virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os
serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo
sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

A Igreja do Diabo Onde histórias criam vida. Descubra agora