Umbra

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      Eu vi um homem, que não enganava os 60 anos, mas parecia pesar como o infinito. 

      Era esguio e rígido como um clarinete desafinado. Mirava-me cruamente, como se quisesse dissecar a minha alma com o olhar. Ele vestia um nu disforme, de negrume dissonante. O peito nulo de vida, cortado nos interiores, fuzilado nas camadas, como um boneco raquítico, remendado de arranhões e perversões. E não era mais humilhante do que as pernas esfarrapadas, impregnada de infecções. A pele estava lapidada marginalmente pelo tempo, onde a testa rugia rugas famintas de exaustão. As maçãs roídas do rosto não eram mais marcantes do que a expressão de orgulho ferido reprimida na ponta do nariz. Os olhos, no esforço de expor firmeza, calejavam no tremor das pálpebras, que deduravam os lamentos de olhos que mentem para si mesmo. A boca, amassada e seca, parecia lograr o loquaz silêncio, que esperneava ao redor. E a barba, mal plantada e rala, infestava seu rosto insosso. Os pés deserdados, tiritavam no chão frio, como dois órfãos castigados pela vida. 

      Toda a velha arquitetura se moldava sob aquele terrível olhar.

      Eu não tinha dúvidas. Era um homem triste. Um miserável. Um falso mártir, do tipo que César cuspiria em cima antes de entregá-lo aos cuidados dos leões. Era um homem odioso.

      Eu senti medo daquele olhar. Daquele tão familiar olhar. Sentia como estivesse me escavando feridas intocáveis, mordendo cada nervo íntimo que eu não permitiria nem a mim mesmo tocá-los. E então, ele começou a avançar lentamente até mim. E eu não podia fugir.

      Um homem, desgraçado pelos rodeios do mundo, arrastava um passo arrependido, e na parte de cima um torso rígido era levado por dois órfãos. As mãos se revelaram então, pintadas de calos e de unhas roídas, adiantando-se para me tocar. Me remoía o asco pelo maldito. É um desgraçado, maltrapilho, maldito. Ansiei que morresse no caminho, que queimasse no ódio de meu coração, que seus esforços rebentassem seus tendões. 

      Eu irei lhe matar. Eu irei lhe matar, se me...

      "Perdoe-me"

      O silêncio calou-se para ouvi-lo sussurrar...

      "Perdoe-me"

      Sabe o estado em que fica a mulher, quando descobre o seu prometido, um presente de deus, amando os seios de outrem? Ou o estado de Dante quando viu o sofrimento dos pecadores sendo mastigado nas bocas de Cérberus?

      Ele começou a chorar, e não me dirigiu mais a atenção. Expunha, porém, um sorriso manco, como um menino triste que compreende as dificuldades do mundo. Passou por mim o seu corpo, o som de seus passos sumiu, sem pressa e sem paz.

      Aquele olhar. Aquele rosto. Aquela súplica. Não poderia ser. Eu fiquei parado, em pé, num coma fingido. Quis chorar. Quis gritar. Quis correr para algum abraço. Eu não podia acreditar. Desejei que acabasse ali mesmo o mundo. Que os cavaleiros de deus, os soldados de Maomé, os filhos de Zeus me julgassem ali mesmo. Não...

      Por um instante, senti que o devia abraçar. Poderia tê-lo recebido em meu recanto. Nele residem projeções de meus medos que somente eu poderia compreender. Mas ele sumira.

      Num ímpeto de desilusão, ergui meu punho, como se fosse uma pedra, e quebrei o espelho.


                                                                                                                                                    Hartô Estari

UmbraWhere stories live. Discover now