Fazia frio naquela madrugada.
Rafael acordou em seu minúsculo quarto, separado do resto da casa apenas por uma cortina de pano, pois tinha derrubado o lençol surrado.
Pensou em dormir mais um pouco, mas viu a hora no relógio simples ao lado da cama, o único item de valor que tinha, e achou melhor levantar e ir ajudar o pai a preparar o culto vespertino.
Tomou um banho e vestiu uma roupa limpa, saindo de casa logo após. Tinha pão e café no templo, e ele tomaria café lá. No bolso, tinha o panfleto que haviam lhe dado na rua, e ele tinha pego sem ler. Aproveitaria para lê-lo no caminho.
Dobrou três ruas à esquerda e duas para a direita, logo chegando na avenida principal, onde ficavam todas as casas dos Mais Fiéis. Luxuosas mansões do tamanho do bairro do rapaz inteiro, com grades douradas e jardins muito verdes. E também porteiros, que não deixavam pessoas como ele entrarem lá.
Tirou o papel do bolso, lembrando-se de quando foi entregue para ele.
Estava naquela mesma avenida, dois dias atrás. Voltava para casa do culto noturno, no qual tinha ficado responsável por fechar o templo. Era sábado, e como sempre, a cidade estava toda iluminada e com várias festas. Uma moça jovem, magra e de cabelos curtos e roxos, aproximou-se dele sem falar nada e entregou um panfleto. Ele colocou no bolso, distraído, após agradecê-la, e ela logo sumiu na multidão. Não lembrou do assunto até ter que lavar suas roupas, quando tirou o papel do bolso traseiro de sua calça jeans. Guardou-o em um canto e prometeu a si mesmo que iria ler no outro dia, quando estivesse indo para o templo.
E ali estava. Segurou o panfleto na mão, desdobrando-o, e fixou o olhar nas palavras. Era um pedaço de papel simples, todo branco e com apenas algumas palavras marcadas em preto no seu centro."VENHA PARA O TEMPLO DO DEUS AZUL. CHEGA DE MENTIRAS AMARELAS. QUARTA FEIRA ÀS OITO DA NOITE"
Rafael achou aquilo um disparate. Como alguém poderia pregar contra a fé no Deus Amarelo? Certamente aquela jovem era uma descrente, que não havia sido suficientemente devota e não recebera a recompensa que queria do Deus. Ele, revoltado, amassou o papel e colocou-o no bolso, pois não haviam lixeiras perto, e não queria sujar a rua tão sagrada onde os Mais Devotos moravam.
E assim, seguiu seu caminho, terminando de andar pela luxuosa avenida principal e voltando para as clássicas moradias precárias do resto da cidade. Crianças e cachorros andavam pela rua, brincando, brigando ou procurando comida. Como não era raro, um corpo jazia estendido no chão, coberto com um lençol, apenas seu pé direito para fora. As tatuagens e a delicadeza do pé entregavam que era um corpo feminino que estava ali. A completa falta de outros devotos ao redor lamentando também entregavam que ela se tratava de uma incrédula. Aquelas que negavam a submissão e eram adeptas ao gozo e ao prazer.
“Teve o que merecia.”
Pensou Rafael. As incrédulas deveriam todas ir pelo mesmo rumo.
Logo, ele chegou no templo. Seu pai já o esperava, e concentrados no serviço, ele e Rafael varreram todo o templo, também colocando as cadeiras e organizando o altar. Rafael passou uma flanela também na urna simples em que todos colocariam suas doações semanais, afinal já havia acabado a semana, e quando tudo terminasse, Fausto, o representante dos Mais Fiéis, viria recolher tudo.
Logo iniciou-se o procedimento da missa, e lá, Rafael olhou para seu pai no altar, falando sobre como os Mais Fiéis eram santos e bondosos, compartilhando a existência do Deus com todos os outros desde o começo, e como deveriam ser recompensados por isso enquanto os outros encaminhavam cada vez mais à eles, ferramentas do Deus, tudo o que possuíam.
Rafael pensou, como poderiam haver naquele mundo os incrédulos? Mesmo com tamanha glória que os Mais Fiéis mostravam ter, como era possível? Olhem, incrédulos, o Deus deu tudo aquilo para eles pela sua fé! Admirem-nos, e um dia serão como eles!
Ele então teve uma ideia. Por sorte, ele ainda tinha o panfleto do Deus Azul, que esquecera de jogar no lixo. Ele iria em missão de fé naquele templo, e mostraria para aquelas almas desesperadas o que era a fé, ele iria convertê-los todos e mostrar como o Deus era maravilhoso! e os que não quisessem, ele iria pedir humildemente para o seu pai ou algum outro pregador dar seu testemunho, para que pelo poder naquelas palavras, os incrédulos se emocionassem com o poder do Deus e, arrependidos, se arrependessem e se convertessem, seguindo pelo caminho certo na vida.
Enquanto pensava, desligou-se do mundo, fazendo o seu plano e imaginando o sucesso que ele teria. Mas desligou-se tanto, que não ouviu quando era a hora de passar para recolher as doações, notando apenas depois que percebeu o contínuo silêncio ali enquanto todos olhavam para ele.
Murmurando um baixo pedido de desculpas, ele se apressou em recolher as ofertas. Dinheiro, joias, e até um cartão de crédito que eles tiveram que recusar, para a devota Mirtes, contrariada, puxar então um pequeno bolo de notas de dez, e coloca-los na urna.
– Vai valer à pena, devota.
Disse Rafael, como dizia para todos depois que depositavam suas doações na urna. Ele passou por todos, recolhendo todo o dinheiro, as joias e algumas outras opções de quem não estava com aquilo disponível no momento. Um quadro e um ventilador, naquela semana.
E assim, terminaram o culto daquele dia. Após limparem tudo, novamente varrendo e passando pano nas cadeiras, chegou Fausto.
O homem, com seu cabelo penteado para trás com gel, barba feita e cara lisa, vestia como sempre um terno alinhado, calça e camisa social e uma gravata. Parecia ali um semideus, no meio de tanta pobreza. Fora um dia Fausto igual a eles? Era o que Rafael indagava-se em seus pensamentos. Prestou atenção no homem, e em seu vocabulário difícil, que pai e filho sempre tentavam aprender para imitar.
– Saudações, semelhantes! Dirijo por estas bandas em nome dos santificados Mais Fiéis. Estaria, por ventura, pronta a oferta desta corrente semana?
Perguntou ele em seu sotaque pomposo. Rafael apressadamente pegou a urna atrás do altar. Não gostava de deixar Fausto, aparentemente tão ocupado, esperando. Ele rapidamente pegou a urna e logo estava longe dali, em seu luxuoso carro preto.
E assim passou-se o domingo, a segunda e o dia da terça. Na noite daquele dia, Rafael falou ao pai:
– Amanhã não irei ajudar você no culto. Partirei logo cedo em uma missão de fé. E isso levará o dia todo, só devo voltar no final da noite.
O pai olhou para ele, com seriedade.
– Não gosto de não ter você no culto, Rafael. Mas, se o Deus diz para fazer isso, você com certeza deverá escutá-lo. Mas veja se consegue acompanhar algum culto e fazer suas doações em algum outro templo, mais perto de eu destino. Te espero lá amanhã, então!
Falou ele, e retirou-se para dormir. Rafael fez o mesmo, pois o outro dia seria longo, e o rapaz queria ter energia e aproveitar a ideia para passar em um outro templo que conhecia perto de onde aconteceria o culto do Deus Azul.
Quando acordou, normalmente aprontou-se, comendo uma maçã quase passada que fora comprada no dia anterior em seu café da manhã, e tomando alguns goles de café.
Saiu de casa, prontamente indo para onde encontrara a mulher de cabelos coloridos, com apenas seu panfleto no bolso e o dinheiro das doações. Aproximou-se então do primeiro templo que viu, do qual conhecia o líder, e explicou a ele que não poderia ir no culto onde habitualmente ia, e perguntou se poderia assinar o livro de doações ali, assim como assistir o culto e fazer sua doação da manhã.
Lúcio, um pastor alguns anos mais velho que o seu pai, não viu problema algum. Ele ofereceu um prato de sopa a Rafael, destinada a quem quisesse passar e pegar um pouco. Como ele comera havia pouco tempo, Rafael recusou, mas prometeu que mais tarde passaria para almoçar e conversar com o outro.
Combinado assim, Rafael aproveitou e ajudou Lúcio a terminar de preparar o templo, sentando-se e esperando o culto começar.
Na hora das doações, ele deu sua nota mais nova e de valor mais alto, enquanto assinava o livro e colocava seu endereço e o templo em que geralmente ia no papel. Depois, ele agradeceu Lúcio e caminhou um pouco por aquela rua, procurando o lugar em que deveria ir.
Ele não achou, infelizmente, pois não haviam indicações de onde aconteceria o culto no panfleto. Ele não desistiu, porém, e depois de almoçar com Lúcio, voltou para a rua, não sem antes, junto com alguns outros devotos, ouvir o líder religioso falar para uma das frequentadoras do templo que a impossibilidade da doação daquele dia não faria falta ao Deus pois ele compreendia a sua impossibilidade de doar. Os cochichos dos outros devotos diziam que para eles o que acontecia era o contrário, e que por aquele ato a devota Rute não tinha tanta fé quanto eles.
Rafael sabia que deveria concordar com aquilo, pois era o que pregavam os pastores, inclusive seu pai. Sua fé era julgada pelo que você doava, não?
Ele indagou-se isto a tarde inteira, até que no começo da noite, ele a viu. A garota de cabelos roxos. Mais que depressa, Rafael foi até ela.
– Com licença. – Falou, segurando no ombro dela, que instintivamente olhou para o rapaz. – O culto será de que horas?
– Vá para trás da casa azul. Estarão esperando lá!
Ela falou, e rapidamente escapuliu na multidão.
Rafael então foi para onde ela falou, um sobrado azul abandonado, três casas depois de onde a havia encontrado. Lá, um pequeno grupo de vinte pessoas aguardava, todos sentados em cadeiras de plástico. Um homem magro e com uma longa barba branca estava no centro de um semicírculo formado pelas cadeiras.
– Olá.
Disse ele para Rafael, indicando os assentos. Rafael sentou-se em um deles. Cerca de cinco minutos depois, a mulher de antes chegou.
– Comecemos o sermão de hoje, meus caros!
Falou o de barba, chamando a atenção
– Hoje temos alguns novos rostos conosco. Fico feliz que tenham se juntado a nós! Eu sou Walmir, e esta honorável dama com madeixas roxas chama-se Ariadne. Somos responsáveis pelo templo do Deus Azul, mas o que é esse templo? Bem, devo lhes dizer que o Deus Azul talvez nem exista. E se existir, ele não é como o Deus Amarelo. Não é o quanto você pode dar que define sua fé. É o quanto você acredita!
Disse ele, e Rafael pegou-se surpreso. Ele concordava com o templo do Deus Azul!
– Na verdade, o Deus Azul quer libertá-los desta falsa esperança. Vocês não vão conseguir nada por dar as riquezas que possuem para os templos, nada exceto encher de grana o bolso dos Mais Fiéis!
Falou Walmir, e Rafael espantou-se. Nunca ninguém ousara dizer tamanha ousadia sobre os Mais Fiéis!
– Por que só eles enriquecem? Por que o seu Deus não mostra sinais? Por que só fala com eles? – Perguntou Ariadne, indo mais para a frente, perto das cadeiras. – Não deem para os templos, ajudem vocês mesmos uns aos outros!
Quando ela acabou, todos aplaudiram, sentindo-se contemplados. E os aplausos mais fervorosos vieram de Rafael.
– Alguém quer dar alguma sugestão?
Perguntou Walmir, sentando-se de frente para os outros. Rafael levantou a mão.
– Pois não?
Novamente ele perguntou.
– Devemos mostrar quem somos. Vamos fazer uma manifestação, no meio da avenida principal!
Ele foi bastante aplaudido por sua sugestão. Todos concordaram, e fariam no outro dia o protesto. Todos unidos, quase cem pessoas, segundo Ariadne.
Rafael saiu de lá um novo homem, mas quando pisou do lado de fora para voltar pra casa, viu a fumaça e as pessoas gritando na rua. Ele correu de volta para dentro.
– Fogo, fogo!
Todos os discípulos do Deus Azul então correram para onde estava o fogo para procurar quem estivesse lá dentro, ou demoraram um pouco mais enchendo baldes com água para apagar o incêndio.
O fogo vinha do templo de Lúcio, onde Rafael estivera mais cedo. O pastor estava deitado no chão, e segundo ele, não havia mais ninguém lá dentro.
Rafael sabia porque aquilo havia acontecido. Para os outros, era importante a repreensão da devota Rute. Ele via o quão errado estivera quando, no dia anterior, pensara que a mulher morta na rua não tivera mais do que o que merecia. Rafael não voltou pra casa naquela noite, pois com mais afinco ainda, ajudou a preparar os cartazes para a manifestação do dia seguinte.
Na outra semana, Rafael e os outros discípulos do Deus Azul estavam muito felizes. O protesto fora um sucesso, e cada vez mais e mais pessoas cansadas do abuso dos Mais Fiéis chegavam ao templo do Deus Azul. Houveram até reportagens nos jornais e na televisão sobre eles, nas quais Rafael, Ariadne, Walmir e todos os outros eram vistos com clareza segurando faixas e cartazes com dizeres de protesto, na frente das mansões da avenida principal.
Muitas pessoas reconheciam seus rostos, e isso passou a ser perigoso para eles, que mantiveram-se reclusos entre um protesto e outro. Até que, um dia uma visita chegou para Rafael. Seu pai estava na porta do templo.
O homem tentou entrar, mas dois discípulos barraram sua entrada. Rafael então parou o que estava fazendo e liberou sua entrada.
O mais novo correu então para dar um abraço no seu pai, e no meio do forte abraço, o pai, em lágrimas, falou para Rafael:
– Lamento filho, mas os Mais Fiéis sabem o que o Deus quer.
E, enquanto o rapaz estava com a pessoa que mais confiava no mundo, a mesma pessoa lhe deu três facadas no estômago. Quando o jovem caiu, todos foram ver se ele estava bem, e seu pai escapou. Rafael morreu ali mesmo, menos de vinte minutos depois.
Ele virou herói, todos queriam vingar a morte de Rafael, conhecido por todos por ser bom. Seu pai sumiu, ninguém nunca mais o viu e ele morreu na miséria, sem nada e nem ninguém ao seu lado. E, pela morte de Rafael, o Deus Amarelo começou a ser cada vez mais esquecido, e o Deus Azul, cada vez mais conhecido. E muitos outros deuses foram surgindo, não só azuis, nem só amarelos. Deuses verdes, vermelhos, roxos e laranjas, e também multicolores, tudo ocasionado por uma voz que decidiu não se calar. E quando aquela voz resolveu gritar, todas gritaram em conjunto, pois Rafael viveria para sempre na história daquela geração.
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O Outro Deus
Short StoryEm uma sociedade dominada por líderes religiosos, poucos têm a capacidade de olhar além e virar-se contra o sistema. Não seja mais um alienado e junte-se à rebelião contra o Deus Amarelo! Projeto Oceano Cheque-Mate #1