I

21 7 0
                                    

Quando o despertador gerou seu grito estridente e desconcertante pelo quarto gelado, minha automática reação para lidar com a súbita falta de interesse pelo mundo lá fora foi apenas a de cobrir meus olhos com a mão direita. Ainda que inútil tal gesto fosse, era a única coisa que poderia ser feita naquele momento para consolar meu corpo e mente cansados de mais uma noite em claro.

Seis horas. O que leva uma pessoa a ter que "despertar" à uma hora dessas? Qual a motivação que me obriga a abrir e fechar os olhos, todo santo dia? Para que? Por quê? Por quem? São perguntas que me pego recordando a cada amanhecer frio de um dia nublado; como um loop intermitente rondando meus pensamentos entre devaneios diversos. Nada faz sentido nesta modernidade tardia. Nada mais está envolto em dogmas ou ideais concretos. Tudo não passa de apenas ensaios sem propósito encenados diariamente em busca de visibilidade. Imaginando isso, sinto-me cada vez mais próximo de doutores e mestres superstar que povoam as páginas da internet. Curioso.

Enquanto lanço o edredom para o lado frio da cama, planejo meu dia meticulosamente em uma pequena agenda que mantenho ao meu lado. Não posso me esquecer de nenhum segundo, um milésimo sequer; isso poderia arruinar minha rotina de uma maneira irremediável. O terno já está pronto, a gravata rubra de seda e a camisa branquíssima bem engomadas, os sapatos pretos lustrados, meias limpas, cueca preta. Um banho revigorante para deixar de lado o eu sonolento corroído pela insônia a mais de dez anos. Os cabelos lavados com os melhores produtos que o dinheiro pode pagar. A barba, bem aparada no dia anterior, recebe mais um ou dois conferes na frente do espelho. Estou pronto.

Sentado em meu velho sofá de couro bege, já completamente manchado e rasgado pelo tempo, tomo um singelo desjejum composto unicamente por um desses copos de macarrão instantâneo. Enquanto encaro meu reflexo na tela escura da TV de muitas centenas de canais presa a parede, percebo que o velho Dust também acordara e fizera seu desjejum como de costume. Correndo do corredor que leva ao quarto em direção a sala, o pobre bichano se aconchega em um dos cantos a fim de retirar de seus bigodes o resto de comida, utilizando para tanto não mais que sua patinha dianteira umedecida com saliva.

― Você deveria comer algo mais balanceado. Ficar se alimentando com essas porcarias em cada refeição irá levá-lo ao caixão. – disse o peludo.

― Sabe muito bem que não tenho tempo para uma futilidade dessas. Além do mais, hoje me demorei na cama mais do que gostaria.

― Se demorou? – ele roia as unhas das patas traseiras enquanto me questionava de maneira soberba – O que vi foi você se revirando na cama como de costume. Preciso arranjar um novo local para dormir. Seus pés me chutando a noite inteira não são nada agradáveis.

Findada aquela velha discussão matinal, Dust se dirigiu a janela da cozinha para, quem sabe, conseguir se aquecer um pouco na luminosidade que por ela entrava. Despeço-me com recomendações sobre como deveria se portar em minha ausência, visto o paletó, e saio apressadamente pela porta da sala, trancando-a as minhas costas.

Chego ao escritório as sete em ponto. Entre pareceres, telefonemas e pilhas e mais pilhas de relatórios e atendimentos a clientes o dia se esvai tão veloz como começou. Segundo Jonas, o gato preto que meu chefe mantinha em seu escritório sabe-se deus por quê, a reunião das 19 horas havia sido cancelada por um problema de saúde de seu dono. Todos poderiam ir para casa alguns minutos mais cedo hoje.

Ir para casa? Para que? Qual a diferença de estar lá ou aqui? No fundo são apenas pontos estratégicos onde posso ser atacado pelo marasmo e pela mais singela falta de vontade de viver. Resolvo então caminhar pelo parque que existe nas redondezas; quem sabe um pouco de ar fresco me faça bem.

Entre alguns cigarros e conversas rápidas com transeuntes de quatro patas aqui e ali, acompanho sem muita empolgação ao pôr do sol em meio ao céu alaranjado com matizes vermelhos em pontos específicos.

― Mais um dia... – acabo por dizer em voz alta tais palavras.

― Você quis dizer "menos um dia", não é mesmo – disse o velho Poppins, o felino da loja de doces bem atrás de onde estava sentado.

― É...

Quando o despertador gerou seu grito estridente e desconcertante pelo quarto gelado, minha automática reação para lidar com a súbita falta de interesse pelo mundo lá fora foi apenas a de cobrir meus olhos com a mão direita. Ainda que inútil tal gesto fosse, era a única coisa que poderia ser feita naquele momento, para consolar meu corpo e mente cansados de mais uma noite em claro.

Quinze para as seis. O que leva uma pessoa a ter que "despertar" à uma hora dessas? Qual a motivação que me leva a abrir e fechar os olhos, todo santo dia? Para que? Por quê? Por quem? São perguntas que me pego recordando a cada amanhecer frio de um dia nublado; como um loop intermitente rondando meus pensamentos entre devaneios diversos. Nada faz sentido nesta modernidade tardia. Nada mais está envolto em dogmas ou ideais concretos. Tudo não passa de apenas ensaios sem propósito encenados diariamente em busca de visibilidade. Imaginando isso, sinto-me cada vez mais próximo de doutores e mestres superstar que povoam as páginas da internet. Curioso.

Enquanto lanço o edredom para o lado frio da cama, planejo meu dia meticulosamente em uma pequena agenda que mantenho ao meu lado. Não posso me esquecer de nenhum segundo, um milésimo sequer; isso poderia arruinar minha rotina de uma maneira irremediável. O terno já está pronto, a gravata em tons esverdeados de seda e a camisa branquíssima bem engomadas, os sapatos pretos lustrados, meias limpas, cueca preta. Um banho revigorante para deixar de lado o eu sonolento corroído pela insônia a mais de dez anos. Os cabelos lavados com os melhores produtos que o dinheiro pode pagar. A barba, bem aparada no dia anterior, recebe mais um ou dois conferes na frente do espelho. Estou pronto.

Sentado em meu velho sofá de couro bege, já completamente manchado e rasgado pelo tempo, tomo um singelo desjejum composto unicamente por um desses copos de macarrão instantâneo, enquanto encaro meu reflexo na tela escura da TV de muitas centenas de canais presa a parede. O que diabos tenho feito até agora? Despeço-me do vazio composto por partículas de poeira dançantes na luz matinal que entra pela janela da cozinha, visto o paletó, e saio apressadamente pela porta da sala, trancando-a as minhas costas.

Oito InfindávelOnde histórias criam vida. Descubra agora