Um grito

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Esta história termina com um grito. Não cabe a você perguntar que tipo de grito nem a mim cabe responder. Porque eu não faço a mínima ideia do tipo de grito que conclui esta história que nem começo direito possui. Esta história que ainda não é história se embaralha na minha cabeça: toda essa massa de palavra e ausência forma uma amálgama grotesca dentro do meu cérebro como se não fosse parte de mim – como se fosse um organismo, um vírus que me forçou entrada, algo que não é puramente eu, mas que precisa de mim para ser mais que carcaça de si. Fibras me embrulham como plástico filme, camada por camada, teias de aranha simbólicas formando um casulo aqui em cima que me aperta o crânio por dentro. E nesse emaranhado grudento – ou melhor, dentro desse emaranhado grudento, alojado em frio contato direto com o meu cérebro ­– algum inseto tenta rastejar tenta rastejar tenta rastejar mexendo inutilmente suas patinhas para longe – mas longe do quê? Da história que acaba com um grito, pois sim. Mas ele está aqui preso dentro de mim, não tem como escapar. Porque ele é a própria encarnação da história, assim como as teias que o prendem ao meu cérebro são a história. Inseto, teias e história violaram-se em mim sem cerimônia, e a única coisa que eu sei é que a história termina com um maldito grito. Um grito de dor, de prazer, de aflição... de ódio puro e simples, um chamado. Que sei eu? Esqueceram de contar a natureza do grito. O inseto rasteja devagar pelo meu cérebro – parece sussurrar com as patas. Ele navega sob as camadas de teias, o corpo pulsante espremido em contato com a minha carne. É parte de mim – sempre foi parte de mim. Se instala com uma delicadeza de fada no meu lobo frontal e ali deposita alguns ovos que breve, breve eclodirão em larvas que vão me devorar do avesso, tornar-se pupas e desabrochar em lindas borboletas meladas de sangue e massa cinzenta. Qual a sensação de ser comido de dentro para fora? Talvez eu nem sinta. Mas talvez eu grite – e talvez seja esse o tema da história que termina em um grito: um homem comido por borboletas. A história sou eu e eu sou a história e a história sou eu. É minha sina ser objeto contado e contador. Locutor da própria história por falta de alguém mais para fazê-lo: lá vai ele corta pela direita pressiona as teclas digita prestidigita a própria história corre corre corre contra o tempo e os insetos eclodem comem-no vivo de dentro para fora do avesso e é goooool do Botafogo! Mas enquanto os ovos não eclodem no gran finale de borboletas manchadas de sangue permitam que eu me apresente. Meu nome é – não, sem nomes; nomes tornam tudo doentiamente pessoal, ainda mais quando o assunto é a morte, e eu não quero tirar o apetite de ninguém, muito menos das minhas borboletas. Sinta-se livre então para pensar um nome desagradável para se precaver de qualquer compaixão. E esse passa a ser eu pelas próximas horas. Grato, em frente, então. Permitam então que eu não me apresente: eu não sou um escritor. Eu não não existo em carne e osso, porque eu não não não sou pura e simplesmente fruto da cabeça de um segundo escritor que me cria e recria a seu bel-prazer – e sabe-se lá quantas cabeças não existem além e além e além. (O que é Deus? Pois para mim é uma sequência sem fim de cabeças. Ou um círculo como aquela cobra que engole o próprio rabo. Deus é a cobra que engole o próprio rabo). Preciso ser rápido porque os ovos podem eclodir a qualquer instante agora. Mas para quê? Eu poderia simplesmente esperar ser devorado – esperar o grito final. Para que continuar escrevendo?

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Não suporto ficar sem escrever, a espera vai me deixar louco. Preciso seguir em frente nem que tenha de parar no meio quando o banquete de mim mesmo tiver seu trágico início – e já terei há muito parado quando tiver seu farto fim. O que seria apropriado para receber com tapete vermelho as borboletas quando elas terminarem de se empanzinar da minha cabeça e quiserem sair e ver o mundo? Talvez uma gravata borboleta e um smoking. Mas não tenho smoking, então vou precisar terminar esta história um pouco mais cedo para ir alugar um. Vai ser o jeito. Até lá, escrevo, mas não prometo terminar nada. Mas, afinal, esta é a minha história, a que termina com um grito. Se já sei o final, para que ter o meio no papel? Talvez seja um processo catártico esotérico transcendente que só vai revelar os porquês ao final. Então prossigo meio no escuro sem saber se vou chegar a algum lugar. Ao menos já acordamos quanto ao meu nome, e isso é um alívio; me tira um peso dos ombros. Pois bem então. Para os que estavam pensando que não haveria história, sinto muito desapontá-los, mas esta é a história de um escritor sem nome que nunca conseguiu gritar. Não por falta de voz, não – em realidade, sua voz era bem poderosa, chegando a ser assustadora se ele de fato quisesse. A questão era justamente: durante a vida toda, ele nunca quis botá-la para fora – nunca precisou –, e a voz foi se amansando, amansando, até que quando ele enfim decidiu gritar em uma discussão com algum imbecil no bar ela já não respondia mais, e saiu mirrada e sem simbolismo. O resultado foi que apanhou de três, o que lhe rendeu uns bons pontos na sobrancelha, um dente bambo e a certeza de que não servia para gritar com quem fosse. A voz se apagou como a chama de um fósforo que já não tem mais para onde ir, e para explicar para si mesmo por que não gritava recorria a uma metáfora estranha de que sua boca era habitada por um casal de lesmas que o faziam pigarrear. Por não conseguir gritar, escrevia. Os dedos roçando as teclas da máquina canalizavam para o papel o grito constantemente preso na garganta, o grito de que ele nem notava a existência – achava que era escritor por vocação, o coitado, não por falta de alternativa.

Mas agora posso ver: os ovos estão para eclodir. As borboletas vêm aí. A história vai sair de uma forma ou de outra. Uma pena que eu não estarei mais aqui quando elas chegarem. Melhor já ir me aprontando, não quero me atrasar. Onde posso alugar um smoking?

Um gritoWhere stories live. Discover now