ELES NUNCA VÃO EMBORA
- De que cor são teus cabelos?
- Não sei. Meio loiros, ruivos, castanhos...
- Parece laranja... realmente indefinível.
- Esse não é o melhor jeito de puxar papo com alguém!
- Pode não ser, mas fiquei realmente curioso frente esse amálgama.
- Amálgama?
- Sim, amálgama, uma mistura...
- Eu sei o que é amálgama, querido.
Acha pedante a tentativa.
- Pois então, são indefinidos. A pele você vê que é mulata?
- Sim. Um amálgama étnico. Uma cor fascinante também.
- Concordo com você.
Ri para o lado oposto.
- O que acha?
Bernardo aponta com os olhos o quadro de Edvard Munch - Suplício por alívio.
- Indefinível.
Ambos riem e se olham com dúvidas equivalentes.
- Me parece triste, como se ela, ou ele, não sei, chorasse desesperadamente.
- Desesperadamente? Não! Ela parece num fim de choro. Quando já se derramaram todas as lágrimas e só resta a certeza.
- A certeza?
- Sim! A certeza. Pior do que o choro desesperado é a certeza que vem após ele. Porque enquanto alguém está no desespero há nele a dúvida de se estar mesmo vivendo esse desespero.
- Como é isso? Você é muito louco!
- Muito louco? Não, é apenas um pensamento que geralmente me ocorre. O desespero é melhor que a certeza.
- Sei. O que você achou do quadro?
- Me mostra a tristeza concreta.
- Como assim?
- É como te falei. Após o desespero, o grito, os murros no espelho.
- Que murros no espelho? Que gritos? Você está me assustando!
- Mas você não me perguntou o que acho do quadro?
- Sim, perguntei, mas você tem ideias malucas. Está conjecturando os sentimentos dessa imagem. O que pode nem ser uma pessoa.
- Realmente, este ser está em um estado de não-pessoa.
- Como assim, não-pessoa?
- Acho que é melhor passarmos a outro quadro.
- Não me leve a mal, mas você praticamente me interceptou, puxou assunto e agora quer que eu o acompanhe na sua visita ao museu?
- Você já entrou em desespero por algo irremediável?
- Sobre o que você está falando?
- Sobre o quadro do Munch?
- Mas você não falou que seria melhor passarmos para outro quadro? E espero que o próximo seja uma paisagem, sem o que pareçam ser figuras humanas. Assim você não fica imaginando o que possivelmente há de sentimento na personagem no momento retratado.
- As figuras humanas te afligem?
- Não, mas afligem a você!
- É, a mim afligem, principalmente quando nelas vejo a imagem do medo. Lembra-se de O Grito?
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ESCARAS
Historical FictionNas páginas de Eles nunca vão embora há uma transfiguração da própria visão do medo e, também, do desconhecido. A ação é contraposta a episódios de inércia, construindo por meio do diálogo das personagens e poucas intromissões do narrador o sentido...