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Não foi porque ele não me estuprou que ele não abusou de mim.

Não foi porque aquilo não passou de um beijo que ele não abusou de mim.

Eu tinha sete anos e ele vinte e um.

Ele me beijou.

Aquela ação fez pensamentos e sentimentos estranhos surgirem dentro de mim.

Então eu sou como a mamãe?

Ele é meu namorado também?

Ele me ama e vai deixar ela?

Pensamentos que uma criança de sete anos jamais deveria ter, eu não era como a mamãe. Eu jamais deveria ter sido olhado como ele olhava para a mamãe.

E nesse momento corremos para a família, alguém que possa sanar as nossas dúvidas.

Mas então ele descobre e o carinho vira agressão direcionada a mim e a mamãe.

E então ela também acabava descontando sobre mim a sua frustração. Me fazendo sentir culpa por algo que eu não fiz.

porque ele não me tocou, não significa que não foi um crime.

Acabei crescendo frustrado. Sendo rejeitado pela mãe que não gostava de crianças e seu namorado que não me queria por perto, não queria saber de novas "mentiras".

Com o tempo meu próprio organismo foi reprimindo a lembrança e a dor daqueles anos, me fazendo apenas uma pessoa chata que não gostava de abraços, beijos ou carinho.

Mas ninguém podia entender o pavor que um simples toque me causava.

As paixões infantis, os brinquedos, as músicas daquela época vieram e foram embora, a fase passou e eu já tinha um corpo diferente, mais definido, tinha chegado a minha pré-adolescência e mamãe tinha arrumado outro namorado.

Um namorado legal, que me queria em todos os passeios, que fazia questão que mamãe me levasse sempre junto. Um que dizia que poderia chama-lo de papai, que disse que cuidaria de mim.

Eu era infantil, reprimido, não tinha porque alguém me olhar como olhavam para a mamãe, não novamente.

Mas em uma noite de verão, enquanto eu estava na casa de sua amiga fazendo o jantar, para que ela ficasse no quintal bebendo e falando besteiras, ele entrou em casa, abraçando meu corpo e passando a mão por ele de uma forma estranha.

Talvez fosse só o seu jeito de fazer carinho, ele era o papai, deveria temê-lo?

Meu medo fez eu tentar me afastar, mas ele não deixou e apenas uma frase fez todo o meu corpo congelar naquele momento.

"Beija o papai" e aquilo foi seguido de "É só um beijo, ela não vai saber", "beija o papai e eu volto antes que ela sinta minha falta".

Em que momento ele deixou de ser o namorado da minha mãe que me prometeu proteção para outro monstro?

O que eu deveria fazer o que?

Gritar?

Correr?

Contar tudo para a mamãe?

Fiz o que fui programado desde aquele beijo esquecido.

Corri, me afastei e novamente, esperei por ajuda.

Mas dessa vez alguém que fosse consciente, que fosse me tirar daquele buraco e curar a minha dor.

Eu me livrei dele, mas não da dor.

Não do medo.

Ele pode não ter feito mais do que passar a mão pelo meu corpo e me abraçado de um jeito estranho.
Ele pode não ter me estuprado.

Mas ele me abusou!

Eu fui roubado, a minha inocência, minha alegria e minha chance de viver.

Eu não consigo ter um namorado, eu tenho medo dos meus amigos e familiares, eu não sou capaz de viver sem sentir medo de um cumprimento ou um abraço de feliz aniversário.

Ele roubou a minha vida.

E isso é sim um crime!

"Ele não abusou de você"Onde histórias criam vida. Descubra agora