PARTE I - Náufrago

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Dandelion parecia absorto brincando com sua bebida. O hidrobier dançava em pequenas ondas espumantes pela taça de cristal, várias e várias vezes, sem nunca tocar sua boca, o que podia ser considerado uma grande blasfêmia para verdadeiros apreciadores de cerveja.

Hidrobier era a melhor cerveja artesanal produzida nos alpes além das Muralhas. O requinte estava presente da plantação de trigo à fermentação; e o sabor do mel das Abelhas da Zidânia – altamente venenosas -, era adicionado para conferir a doce autenticidade e o tom de esmalte escarlate a bebida.

Não obstante, Dandelion havia requisitado ser servido em uma taça de cristal que estivesse limpa, em vez da habitual caneca de madeira que estava quase sempre roída por cupins. Um pedido inusitado de um estranho visitante, mas o taberneiro o serviu feliz quando dois dracmas de ouro foram postos no balcão e gritou para que o cozinheiro trouxesse seu pedido.

Mas nada disso era relevante para Dandelion. A bebida deveria fazê-lo esquecer, mas seus movimentos suaves transportavam sua mente para muito além deste vilarejo pacato: tentava recolher fragmentos de memórias que pudessem lhe dar alguma compreensão de como havia parado na terra natal de seu capitão e dar fim as medonhas visões que tinha sempre que fechava os olhos.

Ele lembrava do mar violento batendo na popa. Homens correndo pelo convés e amarrando os caixotes com cordas fortalecidas com couro para que não caíssem do navio. Eles já estavam fora da rota há seis luas e o capitão brandia ordens e xingamentos a cada um dos marujos para que, quem sabe, durassem mais um dia, como uma grande família em crise.

Depois, nada além de um grande clarão e a percepção distante de ser carregado pelos tornozelos, os pés descalços, a cabeça zunindo. Estava inerte, fraco e entorpecido, arrastado pela areia da baía, quando sentiu que lhe tocavam os bolsos das calças e desciam até os pés. Alguém procurou bens no bolso interno de sua gosmenta jaqueta e depois se afastou.

Dois homens de estatura mediana davam comandos um para o outro para agilizarem o saque e irem embora, mas Dandelion ouviu apenas murmúrios abafados.

Seu corpo todo formigava, resultado do retorno de seus membros. Logo se viu tomando controle de si novamente. Vomitou a água dos pulmões, girou para o lado antes de vomitar o-que-quer-fosse com sangue viscoso. Talvez por efeito da adrenalina, uma força sobrehumana de ódio pulsava em Dandelion. Nenhum marinheiro se deixaria ser furtado dessa forma. Depois de todo o trabalho que sua equipe teve com o transporte dos minérios, ele honraria sua família do mar. Esticou o braço e agarrou a primeira pedra ao alcance das mãos.

Lentamente se pôs de joelhos e então apoiou a mão na perna para levantar. Estava de pé e cambaleante. A pés tortos, Dandelion caminhou silenciosamente em direção ao vulto naquela noite estrelada. Os dois homens estavam de costas, tentando virar uma grande canoa, procurando os caixotes remanescentes que conseguiriam carregar. Dandelion levantou a mão que agarrava a pedra com força e a desceu num movimento brusco. O homem à esquerda nem teve tempo de reagir. Tocou com dois dedos à testa e sentiu o sangue esvaindo de seu crânio severamente rachado. O pânico em seu olhar durou apenas alguns instantes e desfaleceu na areia como um boneco de pano.

Seu amigo de furto ficou boquiaberto o que apareceu uma eternidade, até urrar em fúria e tentar sacar sua afiada lâmina, mas Dandelion foi ágil. Largou a pedra e segurou as duas mãos do ladrão que ficou travado no punho da espada. Tratava-se de um novato, pois uma espada daquele porte não necessitaria de ambas as mãos para sacá-la.

A arma emperrou na bainha com o vigor de Dandelion, que então decidiu deixar a física seguir seu curso e retirou sua força para que a espada saísse com velocidade, apenas para direcioná-la de volta para seu dono. Num movimento semicircular a ponta da espada cortou da boca do estômago à virilha do ladrão, que regurgitava de dor ao cair ao chão, desesperadamente tentando estancar a hemorragia com as mãos nuas:

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