PARTE II - Reminiscências

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O sol que entrava pela janela castigava sua vista. Dormira pessimamente e durante todos os pesadelos que tivera não conseguira acordar. Era como estar preso por finas paredes de palha que resistiam a todas as tentativas de derrubá-la.

Dandelion se sentou na ponta da cama e enxugou o suor da testa com uma toalha. Aquilo havia de ter fim, ele só precisava saber como. Pegou o livro de capa dourada na ponta da cabeceira e abriu numa página aleatória:

"Elisabeth nunca havia trepado tão bem. Mas isso era só o que eu me dizia todas as vezes. Apesar da idade, mantinha o corpo de uma virgem, só que com muito mais fôlego. Aprontei as pregas das calças antes que ela tivesse outra ideia louca.

– Por todos os deuses, Liz. Como você consegue? Ninguém é feroz como você.
– Eu não sou qualquer um, tolo.

Eu bem sabia. Só me perguntava por quanto tempo tudo aquilo ia durar. Meus homens não poderiam saber que estava deflorando a moça em vez de atravessando uma espada em seu pescoço, mas eu não podia evitar. Lá ela ficaria até os tempos se acalmassem para que eu a pudesse desposar dignamente como uma rainha.

Iria partir por duas semanas numa missão ignóbil do rei, e minha tristeza era não ter Elisabeth ao meu lado por todo esse tempo. Eu tentei dizer as palavras certas, mas tudo que falava soava estúpido e dava fim ao romantismo.

– Escuta, Liz. Essa vida... não vai ser para sempre. Eu te darei uma nova.
– Você me protege, Alenke. Já faz muito por mim.

Ela beijou meu pescoço. Era um hábito constante, e certamente mais saudável que os arranhões que me deixava nas costas. Eu sorri. Preferia acreditar que aquelas palavras eram verdade, mesmo que no fundo saber que tudo aquilo poderia ter um breve fim se descoberto. Ela não era apenas alguém especial na cama como também tinha a lábia de uma serpente para ter vivido até agora. Esguia, esbelta, perigosa. Teria de viver naquele estábulo com a comida que trazia até que a Inquisição acreditasse ter exterminado todas as bruxas".

Dandelion virou mais algumas páginas, procurando algo que lhe despertasse atenção, embora não pudesse deixar de se impressionar com a riqueza de detalhes do diário. Mais parecia uma prosa literária com aquelas letras cuidadosamente desenhadas, sem retoques. Surpeendente para alguém bruto como seu capitão. Finalmente captou algo:

"Segurei a face com as mãos, num misto de fúria e tristeza. As lágrimas que saiam dos olhos deveriam ser as mesmas que me entalavam a garganta. Saquei minha espada e adentrei o casebre. Roberth era um dos homens que pensei que pudesse contar, mas pensou com a cabeça de baixo e agora teria de pagar. Eu não tinha disposição de continuar a ouvi-lo suplicando pela sua vida, então dei um fim rápido. Minha espada estava prontamente afiada e transpassou pelo seu pomo-de-adão. Muito sangue jorrou. Liz cobria os seios com a toalha:

– Alenke, não faça isso. Você sabe que-
– Cale a boca, Liz. Seu veneno me afetaria em outro momento, mas hoje não. Já se esqueceu que respira por minha causa? Que come por minha causa? Pois lhe farei lembrar.
– Você não entende, Alenke. Eu estou grávida. Terei um bebê seu, nosso. Nossa vida irá se ajeitar. Por favor, confia em mim. Eu te rogo.

Por um momento fiquei sem chão. Um filho? O rosto em dúvida. Elisabeth me disse palavras tão importantes para mim, jogando ao léu para se salvar. Minha face era sombria:

– Não se podia esperar nada mais de uma bruxa. Como saberei se o filho é meu? Não, malditas fostes quando a salvei, e maldito será teu fruto que nunca irá florescer sem a barriga da mãe.

Elisabeth compreendeu o recado e sorrateiramente tateou algo próximo. A maldita pensava que conseguiria jogar alguma de suas poções em mim, mas um golpe tão baixo nunca afetaria um cavaleiro grimeriano. Eu pisei em sua mão com força e a levantei pelo pescoço. Sua pupila primeiro dilatou e depois se acentuou como uma íris de gato. Sem fôlego, Elisabeth semicerrou os olhos e sua face se transfigurou como se já não fosse mais a mesma. Acertei um bofetão na face e ela desmaiou."

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