Parte I - Cristal Dourado

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A cadeia de montanhas, de picos esbranquiçados que rasgavam o céu, formava uma muralha natural que escondia a cidade ao meio. O corpo da cidade de Karasu, era constituído pelos prédios de madeira enegrecida, estes, ao longo dos andares, eram cheios de remendos e outras construções adjacentes, o que os faziam crescer mais para os lados do que para cima, de uma forma tão irregular, quanto perigosa. Os telhados envelhecidos, de topos inclinados e pontas curvas direcionadas ao céu noturno, exibiam os inúmeros corvos, que já se consideravam cidadãos da cidade.

Naquela noite, as lanternas de papel branco iluminavam a cidade de aspecto melancólico, anunciando de que era um dia importante. Os templos, as únicas construções que permaneciam as mesmas desde o tempo sem máquinas, estavam cheios, em comemoração ao dia dos mortos.

As ruas retorcidas e sem forma definida, já que subiam e desciam em ângulos ilógicos, também se encontravam apinhadas de pessoas. Os moradores de Karasu usavam os quimonos brancos, típicos da comemoração da data fúnebre, alguns até seguravam as cintilantes lanternas de papel. As vestes eram grossas o suficiente para protege-los do frio intenso que pairava pela cidade, mas os protegia apenas do frio, pois a real ameaça se encontrava patrulhando a cidade.

A polícia de Karasu era formada por criaturas de mais de dois metros de altura. Cada uma exibia duas espadas presas à cintura, de lâminas prateadas extremamente mortais. A armadura enegrecida imitava os samurais humanos de outrora. Já os chapéus arredondados e de metal, cobriam o rosto ameaçador. Um barulho metálico ressonava de seus interiores, eram as engrenagens lutando em seu interior, o som de uma vida fabricada e incessante.

Os humanos, extremamente frágeis perto daqueles colossos, iam em direção a um lago, que incrivelmente, mesmo com a eterna neve que caía, não estava congelado, fenômeno que os habitantes atribuíam aos deuses imaginários da montanha – Uma ingenuidade coletiva, que servia para mantê-los obedientes.

Karasu, não apenas representava a evolução tecnológica de um mundo, mas também mostrava a decadência de uma espécie, que no ápice de sua soberba, ainda se achava dominante. Os humanos acreditavam que eram mestres da tecnologia que criaram, sem saber, em sua ignorância coletiva, que a criatura ultrapassou seu criador, ao ponto de subjugá-lo. O que será que pensava a revoada de corvos, livres para ir onde bem entendessem. Será que tinham pena daqueles pobres coitados que não sabiam o que faziam, e que ainda teimavam em se autoproclamarem deuses?

Em meio aos habitantes, inertes dentro da massa uniforme, uma figura se destacava. Seu chapéu de palha cobria o rosto jovem e de feições delicadas, com olhos puxados e lábios comportados, as roupas grossas, em tons avermelhados, contrastavam com o branco e dourado a seu redor, as cores gritavam que ela não pertencia aquele lugar em ruinas. Uma espada estava presa à sua cintura, assim como algumas pequenas bolsas, porém a sua arma mais potente se encontrava nas mãos. Um par luvas, feitas de um metal avermelhado, deixavam as mãos da jovem maiores do que eram, o acessório terminava em um mecanismo que envolvia os dois pulsos da moça.

A jovem olhava para as pessoas com pesar. Ela, assim como os corvos, era livre, uma viajante que se viu obrigada a ir até a tão esquecida Karasu. Acompanhando a multidão, que cintilava a luz dourada das lanternas, logo ela se encontrava em volta do gigantesco lago, mas sua atenção ia para as criaturas de metal, que patrulhavam, atentas a qualquer ameaça. Não demorou muito e o ritual se iniciou.

De repente, a multidão criou um corredor em seu interior. Pelo caminho recém-formado, duas máquinas passavam escoltando uma mulher que vinha logo atrás, ela andava presunçosamente, ao passo que as pessoas lhe presenteavam com generosas reverências. Logo ela se postou em uma plataforma que invadia as águas do lago, e assim que ela se virou, um silêncio imediato se instaurou entre o mar de branco e dourado:

- Caros habitantes de Karasu, hoje estamos aqui para celebrar a partida de nossos entes queridos, para ajuda-los a atravessar para o outro mundo – a multidão parecia feliz, ninguém chorava, apenas tinha um sorriso no rosto. Assim a mulher se virou em direção ao lago e continuou a falar – Eu, Kitsune, ofereço aos mortos uma passagem em paz.

Enquanto Kitsune falava, algumas pessoas que seguravam lanternas de papel, se dirigiram às margens do lago. Ao mesmo tempo, sem ninguém perceber, a moça de vermelho começou a se aproximar da plataforma, onde Kitsune se ajoelhava:

- Agora, libertem seus entes queridos – Assim que Kitsune terminou de falar, todos, inclusive ela, retiraram algo de dentro das lanternas.

Dentro, do que lembrava uma flor, se encontrava um cristal que cintilava uma luz dourada. Todos os habitantes que estavam na beirada do lago se ajoelharam, e, depois que Kitsune soltou ao lago o cristal que levava, os habitantes imitaram seu gesto. Logo, as águas foram tomadas pela luz dos inúmeros cristais, que boiavam, indo ao centro do lago. Porém, a calmaria daquele belo ritual foi perturbada repentinamente.

A moça de vermelho avançou em direção à plataforma onde Kitsune se encontrava. O chapéu de palha voou de sua cabeça, revelando os cabelos negros presos em um rabo de cavalo e as faces delicadas da jovem. As duas máquinas impediram o caminho, com as espadas em riste, porém, a jovem, com uma destreza magistral, conseguia aparar os golpes. A moça pulou para trás, se afastando das duas colossais máquinas, e assim que recuperou seu equilíbrio, imediatamente, da palma de sua mão, uma esfera feita de eletricidade surgiu, sendo arremessada no espaço entre as duas criaturas. A esfera, ao chegar perto dos dois samurais, explodiu, atingindo as duas máquinas, que imediatamente pararam de funcionar.

A viajante continuou a avançar, passando pelas duas máquinas inertes, enquanto Kitsune, sem reação, a encarava:

- Akane... mas como?

- Sim, sou eu. Você não achou que iriam pegar o que é meu, sem que eu tentasse pegá-lo de volta? – A jovem, de ar zombeteiro, passou por Kitsune, indo diretamente ao lago.

Akane, com muita rapidez, pegou um cristal azulado de uma das bolsas da sua cintura, e, em um movimento só, retirou um cristal roxo do mecanismo no pulso e o substituiu pela pedra que tinha acabado de pegar, colocando-o na bolsa em seguida.

Quando já estava na divisão da plataforma com as águas, Akane apontou a palma da mão para o lago, onde, no mesmo instante, um caminho começou a ser formado por gelo. A multidão acompanhava a cena perplexa e sem reação, pois magia não era algo recorrente em Karasu, não na frente dos humanos.

A moça estava concentrada demais em seu objetivo, pegar o cristal dourado que Kitsune soltou ao lago. Conforme ia se aproximando do objeto luminoso, Akane ouvia uma voz em sua cabeça, que apenas ela podia ouvir. As palavras eram incompreensíveis, mas a moça sabia a quem a voz pertencia, ou melhor, pertenceu. Em pouco tempo, ela conseguiu pegar o cristal, porém ela não contava com o contragolpe que Karasu guardava para ela.

As águas do lago começaram a esquentar sozinhas, destruindo o caminho de gelo que Akane criou. No desespero, a moça tentava congelar ainda mais o lago, mas seus esforços eram em vão, pois o gelo não se formava. Logo, Akane estava sendo abraçada pelas águas aquecidas.

A jovem guerreira tentou nadar, sem soltar o cristal dourado, mas umaforça começou a puxar para o centro do lago. Quando ela olhou para trás, viuque um redemoinho se formava, o ritual estava chegando ao fim. Os cristaiscintilavam ainda mais, ao passo que eram engolidos pelas águas que se tornaramviolentas. Akane, assim que estava próxima ao centro daquela força, desistiu delutar, apenas prendeu sua respiração e segurou o cristal, enquanto era puxadapara o a escuridão.     

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Akane e a Cidade dos CorvosOnde histórias criam vida. Descubra agora