O ponteiro do relógio

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O que é a vida, eu me pergunto. Para muitos, eu sou a pessoa que tem as respostas, mas na verdade o que eu tenho, são apenas perguntas. Perguntas e dúvidas sobre as escolhas e decisões que fiz no decorrer de toda uma vida, com cada uma delas a preencher-me de experiência os cabelos brancos.

Foi isso que o tempo fez comigo. O branco dos meus cabelos e as rugas cravejadas em meu rosto marcavam os vários anos que haviam se passado e talvez, apenas para ter certeza de que a velhice chegara, meus ossos doíam e os movimentos eram lentos, quase que inexistentes.

Meu companheiro é apenas um relógio de madeira, tão antigo quanto eu, o barulho de seus mecanismos são os únicos ruídos que ouço no quarto silencioso. Quando o relógio marca a hora, a portinhola se abre e o velho pássaro cuco deixa se mostrar por algum tempo antes de voltar para o confortável e silencioso relógio, falando nisso, aí vem ele com seu delicado bico abrindo e fechando, marcando nove horas da manhã, fazendo seu ritmado som: cuco, cuco, cuco...

Da minha cadeira de balanço, fiquei ouvindo aquele único e isolado som, minha mente era preenchida das mais variadas memórias, a começar pela minha infância e enquanto relembrava, o silêncio voltou a se instalar no meu quarto de asilo. Já doente e debilitada, sairia daquele mundo do mesmo modo como havia entrado: sem nada nem ninguém.

Minha respiração está pesada hoje. Já tem alguns dias que não consigo me alimentar direito e hoje não foi diferente e enquanto todos os outros estão aproveitando os raios de sol e o leve sopro do vento no lado de fora, eu continuo sentada em minha cadeira de balanço, apenas olhando o ponteiro do relógio girar lentamente, a dar voltas e mais voltas, fazendo o passarinho cuco sair de hora em hora para soltar o seu fôlego e cantar o seu já conhecido cuco.

Os enjoos estavam mais frequentes agora e no mesmo instante que o relógio marcou quatro horas da tarde, lembrei-me dos enjoos que senti durante minha gravidez. Os dois não eram iguais e era diferente também do enjoo que senti quando meu filho partiu, uma sensação não se comparava a outra: uma, lembrava-me momentos felizes, enquanto outra, era como se algo estivesse me abandonando e a terceira marcou o momento mais triste de minha vida. Parecia estar em um looping de sensações e emoções.

É estranho como funciona o tempo, por mais que não nos lembramos dele durante toda uma vida, ele sempre reservará um momento em que será lento e irreversível.

Podia ouvir as vozes das enfermeiras vindo de muito longe, de outro lugar em que não estou presente. Estou em um lugar só meu, lembrando do único homem que amei na vida vendo-o partir, levando um pedaço meu junto de si. Esse era o preço que se pagava por viver tanto. O barulho do relógio cuco me fez voltar à realidade quando marcou nove horas da noite. O quarto começara a ficar escuro, apesar das luzes já estarem acesas, a escuridão tomava conta do lugar, ou talvez, começava a tomar conta de meus olhos.

Afinal, qual era o propósito da vida? Quando se é velho, temos todo o tempo do mundo para pensar nisso e um dia chegará a vez de vocês jovens, chegará o dia em que vocês se lembrarão de que o tempo não é apenas uma passagem, o tempo é o nosso mais fiel companheiro, o único que estará do nosso lado a vida toda e nós, arrogantemente, o deixamos para trás, abandonamos e partimos para outra jornada em que o tempo não é mais o senhor das coisas, mas apenas, outra coisa qualquer. O cuco da meia noite está soando e posso ouvi-lo claramente de minha cama, mesmo com o sono a fechar meus olhos, continuo no looping de emoções.

Toda uma vida corria lá fora, pessoas apressadas caminhavam aborrecidas nas calçadas, carros e mais carros entravam e saíam das ruas movimentadas, o clima estava abafado e poucas pessoas notavam que não havia uma nuvem no limpo e claro céu da manhã, ocupados demais com seus problemas para olhar e ninguém havia notado que o ponteiro do relógio havia parado de girar.

O ponteiro do relógioWhere stories live. Discover now