Pela janela ao meu lado o clima britânico parece calmo e sereno, mesmo que frio de mais para um cara do sul de Minas Gerais. A quietude desse trem contrasta perfeitamente com o caos instalado na minha mente desde aquele dia, bendito dia em que resolvi completar dezoito anos. A sensação de estar à milhas de distância dos meus problemas é libertadora, mas só de encarar meu celular com as várias chamadas perdidas dos meus pais eu me sinto desesperado, como se de um jeito ou de outro precisasse enfrentar essa coisa toda, afinal... eu não posso me esconder em Londres para sempre.
Fazem duas semanas desde que cheguei ao pedacinho do mundo na Inglaterra, meio que fugido mas ainda assim consigo sentir a mágica dessa cidade em cada um dos meus ossos. A única coisa que impede essa viagem de ser o maior marco na minha vida é o fato de que os meus últimos momentos no Brasil foram meio conturbados no quesito família; minha tão esperada festa de dezoito anos terminou mais ou menos assim: "- Mãe, pai. Eu não sei como dizer isso para vocês mas... eu sou gay. - Ah querido, nós entendemos completamente. - E...eu não vou para a faculdade esse ano, e provavelmente em ano nenhum. - Oh meu Deus! o que fizemos para merecer isso? Estamos tão decepcionados! Antônio, chama o padre Simão, temos que exorcizar esse garoto agora!" E sabe, eu até fico feliz com o fato dos meus pais serem completamente compreensivos com a minha sexualidade, mas não pensei que ter outros planos para a minha vida profissional que não incluíssem a faculdade fosse deixar eles tão chocados.
Eu passei o ensino médio inteiro pensando na forma mais triunfal para "sair do armário" para a família, e ao longo de três anos minha irmã mais velha, Lucia, e eu fizemos uma lista gigantesca de ideias originais para fazer isso. Confesso que adicionar dona Maria e seu Antônio num grupo de Whatsapp chamado 'armário' e depois simplesmente sair sem dizer mais nada sempre foi a minha favorita, mas a Lu achou que uma boa conversa em um clima agradável - num lugar cheio de pessoas, de preferência - fosse mais apropriado para o coração dos velhos, e bem... foi o que fizemos. Claro que todo o planejamento de esperar até o fim da minha festa de aniversário em que toda a família estava, não adiantou de nada quando o grande perigo das notícias estava nas palavras "faculdade", "não", "fazer" e "vou". Mas quem é que iria adivinhar que eles iriam surtar com isso?
- Hey, gay boy! - Nem preciso olhar para o lado pra saber quem é que se jogou no banco ao meu lado. É Miles Jones, a garota que vive no quarto ao lado do que eu aluguei num albergue em Camden, e desde o dia em que nos esbarramos no corredor enquanto ela carregava uma garrafa de uísque não nos separamos mais.
- Terminou de paquerar aquele cara da frente ou o que? - pergunto com um sorriso, ou pelo menos com o esboço de um.
- Nein. E eu sinto muito meu amigo, mas aquele lindinho no banco da frente não curte o seu tipo.
Seus braços finos passam pelos meus ombros e sinto sua cabeça desabar encima de mim. Sempre ouvi dizer que o povo europeu é extremamente reservado, e que muitos costumes brasileiros podem ser vistos como ofensivos, mas acho que se eles ensinaram isso para todos os mini-europeus na escola primária, Miles faltou todas as aulas. Nos conhecemos há um mês e já possuímos um alto nível de intimidade, é como se a garota fosse minha irmã ou minha melhor de amiga de infância.
- Vamos em uma festa. - Depois de um mês ouvindo as maluquices de Miles Jones, eu já me acostumei com o jeito como ela simplesmente diz que vamos fazer algo sem ao menos se dar ao trabalho de me perguntar se eu estou afim.
- Nós vamos é? Não me lembro de ter dito que eu estava afim.
- Eu sei que você está afim. É tipo, mágica. Eu simplesmente sei.
- Oh, tipo telepatia?
Seu rosto abre espaço para uma expressão meio confusa, que me faz rir um pouco. A forma como Miles pressiona os lábios num biquinho é extremamente fofa e infantil, o que não condiz nenhum pouco com a sua personalidade.
- Psicopatia? Tipo: "Argh! eu vou matar você?" ou Jason?
- Não, não. Sem Jason. Telepatia tipo, conexão mental. Sacou?
- Ah! Sensate! isso mesmo, somos tipo os sensate. - Termino em uma gargalhada, abraçando a garota logo em seguida. Algumas vezes eu me pergunto o que seria de mim sem Miles, e a única resposta é que eu ficaria perdido pra caramba. - Mas olha o foco Nico. Temos uma festa pra ir, e os meus poderes sensate dizem que você está louquinho para ir curtir a vida noturna em Londres.
- Nós estamos curtindo a vida noturna em Londres já fazem semanas, talvez eu queira ficar no meu quarto lendo um pouco essa noite.
- Oh não, você definitivamente não quer isso meu amigo. Eu topei pegar um trem para Bristol e passar o dia todo com você andando pelos lugares onde aquela série teen qualquer foi gravada, e agora quero a minha recompensa. Sem falar que vão ter vários garotos gays para você pegar, quem sabe encontre o amor da sua vida.
- Primeiro: Série teen qualquer? Como você ousa dizer uma blasfêmia dessas? Skins foi a melhor série teen produzida nesse país. E mais! Eu já disse que essa é uma viagem de auto-conhecimento, e não uma aventura estilo Acapulco Shore, para encontrar meu par perfeito, e eu adoraria se você respeitasse isso. - Certo, eu sou um apaixonado por séries teen europeias e atualmente não tenho interesse nenhum em caras, ou em me atracar com eles no banheiro de uma boate, e mesmo que eu viva repetindo isso para Miles, ela parece não entender que isso não faz o meu tipo, nunca fez o meu tipo.
- Você é hilário Nico! Vem, vamos pra casa por que mais tarde tem festa! - Ela diz entre gargalhadas assim que o trem para na estação. Descemos ainda abraçados em meio a risadas, o que chama a atenção de algumas pessoas ao redor. A verdade é que uma festa me parece uma boa ideia para todas as noites, desde que eu esteja na companhia de Miles e alguns de seus amigos mais loucos, daí não falta mais nada para eu me sentir em casa.
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Viagem ao pôr do sol [CONTO]
Short StoryNicolas Toledo acabou de completar seus dezoito anos, e não viu momento melhor para se assumir para os seus pais do que em sua própria festa de aniversário, e por incrível que pareça, ter um filho gay foi muito mais fácil para eles digerirem do que...