Capítulo 2

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O salão do trono está silencioso. É o único lugar em todo o castelo onde os preparativos do casamento ainda não haviam afetado. Por todos os lados, pelos cômodos grandiosos, pelos corredores de pedra, criados correm de um lado ao outro para deixarem tudo organizado para a grande celebração do dia seguinte. Não é todo dia que sua majestade, o Rei de Montemor, se casa, ainda mais com uma tão bela e misteriosa rainha. As fofocas pipocam por todos os lugares. Laureth, a mais velha cozinheira, que servira o rei desde que este era um garotinho brincalhão, comenta em alto e bom som sobre como o menino Monferrato parece feliz com a cerimônia. O lacaio Albert jura de pé junto que o próprio rei colhera hoje mais cedo as flores que enfeitarão o buquê da noiva.

A grande verdade, porém, é que não há felicidade alguma dentro da alma do pobre homem.

- Rei Afonso? - A voz soa de longe, entre as sombras mais afastadas do ambiente. O Rei levanta a cabeça, enquanto Felipe de Analuzia, um dos seus conselheiros mais fiéis, se aproxima do trono, com cautela- Desculpe incomoda-lo, Magestade, mas precisamos discutir....
O pensamento do jovem rei, porém, já está distante. Ele se ajeita no trono, cansado. Perdera a conta de quantas vezes o conselheiro o solicitara apenas naquela noite.
- Chega, Felipe, por hoje chega...
- Mas majestade o reino...
- É um caso de risco de morte?
- Não Majestade, mas....
- Estamos sendo invadidos? - o tom usado pelo homem é mais ríspido do que ele planejara, mas já está saturado com tantos problemas consumindo-o.
- Não Majestade, mas...
- O castelo está em chamas?
- Majestade, por favor, não é de sua natureza ignorar quaisquer questões relacionadas ao reino!!! Não é prudente...
- Minha natureza? - a mão de Afonso explode em um soco no carvalho maciço do trono,  causando um estrondo e fazendo Felipe arregalar os olhos. - Saia já daqui, por hoje chega.
O servo se retira com uma reverência, obediente. Afonso afunda novamente a cabeça entre as mão, respirando com dificuldade. Ele odeia ser ríspido com as pessoas, ainda mais com Felipe, quem sempre foi um conselheiro fiel ao seu rei e um bom amigo. Porém, algumas coisas são inevitáveis. O peso do mundo que Afonso carrega nas costa o está fazendo desmoronar. "Minha natureza", ri baixo e de forma sarcástica "Minha natureza..." Um suspiro saudoso escapa de seus lábios. Suas mãos vão instintivamente até a coroa que adorna sua cabeça. Com cuidado, retira o objeto e imediatamente se sente mais leve. O brilho dos rubis faz os olhos do rei parecerem arder em chamas.
"Se conhecessem minha verdadeira natureza", segue sussurrando baixinho, "eu provavelmente não seria o Rei".

Afonso Monferrato nasceu para governar. Ele sabia disso desde pequeno. Cresceu pelos corredores do velho castelo, escutando que um dia seria o Rei de todo aquele lugar, por isso deveria desde sempre se dedicar ao seu povo e ao seu dever.
Ainda criança, passava horas com seu pai na biblioteca, estudando sobre os seus antepassados, sobre os acordos de guerra e a melhor forma de lidar com os desejos de toda uma nação. Era um menino e vez ou outra seu olhar se demorava na janela, observando seu irmão mais novo, Rodolfo, brincar livremente pelos jardins do castelo.
A Rainha, sua vó Crisélia, era uma governante justa e sábia e por quem Afonso nutria um carinho inestimável. Muitas vezes, durante as aulas intediantes de boas maneiras ou história da arte, quando o menino já não aguentava mais ouvir uma palavra sequer daquele monólogo interminável, era nela que ele pensava. Afonso queria deixa-la orgulhosa, queria ser o melhor Rei que Montemor já vira, apenas para faze-la feliz.
A verdade, contudo, era que o menino não queria a coroa; seu espírito era livre, selvagem; queria conhecer o mundo, não ser dono dele. Havia um desejo reprimido dentro de seu coração de um dia fugir, pegar sua espada e sair caminhando pelo mundo, sem qualquer responsabilidade pesando em seus ombros. Por isso, talvez, sentisse um pouco de inveja do irmão mais novo. Rodolfo era tão mais livre, escavando tesouros no jardim ou aprendendo a pescar no riacho que ficava ao norte das muralhas; não precisava aprender leis complicados ou ser sempre justo e bondoso, ele era apenas ele, um menino de dez anos.
Afonso também queria ser apenas um menino, mas lhe era impossível, principalmente depois da morte dos pais.
Ele se lembra de estar neste mesmo salão, logo após o cortejo funebre dos pais, sentado no trono, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto magro. Em seus aposentos, na torre leste, uma trouxa com todos os seus pertences estava arrumada, decidira mais cedo que fugiria daquele lugar. Ele perdera os pais numa emboscada do reino inimigo, o que mais a coroa tiraria dele? Afonso não queria esperar a resposta.
Sem que percebesse, a rainha entrou silenciosamente no cômodo e se pôs de joelho, na frente no menino, chamando-lhe a atenção. Nas mãos da rainha encontrava-se a coroa que pertencia muito provavelmente ao seu pai, reluzindo em vermelho e dourado.
Afonso encarou a avó; a velha senhora estava desolada. Seus olhos, outrora tão vivos, estavam opacos e cansados; seu rosto marcado por rugas que nunca antes estiveram ali.
-Eu quero que você me escute, meu neto - o menino concordou com a cabeça, mordendo os lábios, tentando controlar o choro - Nunca é fácil, sabe? Ser o rei de um povo demanda sacrifício e muita coragem - ela fez uma pausa, controlando a respiração. O menino colocou a mão em seu rosto, num gesto terno, limpando suas lagrimas - Você se parece muito com seu pai... É, se parece sim... Ele é... Ele foi o homem mais corajoso que eu conheci e preciso que você também o seja.
Afonso não sabia muito bem onde esta conversa chegaria, mas entendia perfeitamente que não restaria um pedacinho do coração no lugar, ele já jazia no chão, dilacerado.
Crisélia esticou as mãos para o menino e colocou a coroa em seu colo. O príncipe a olhou aturdido.
-Eu não vou durar para sempre,  Afonso e eu preciso de você aqui. Eu preciso que você seja o melhor Rei que Montemor poderia ter. Está no seu sangue e quero que honre isto.
"Mas porque eu?", ele queria gritar. Por que não Rodolfo, se tinham o mesmo sangue? Só porque ele nascera anos antes merecia carregar o peso do mundo nas costas? Não era justo.
Mas o menino não disse nada, apenas assentiu, sutilmente.
- O reino dentro de poucos anos estará em suas mãos, meu príncipe. Eu confio esta tarefa a você. Quero que jure ser um bom rei, que cumpra seus deveres com honestidade e bondade. Você me promete? Promete honrar o nome dos Monferratos? Honrar a memória dos seus pais e ser o melhor Rei de que já se teve notícia?
Afonso encarou a avó. Como dizer a rainha que ele não queria reinar? Como dizer que lá em cima, escondida sob a cama estava sua trouxa esperando por ele? Como contar que ele planejava fugir e ser finalmente livre? Ele não podia, não agora, não depois de tudo isso. A dor que ele encontrou no rosto de Crisélia o fez segurar bem forte a coroa em suas mãos, engolir o pranto e dizer com firmeza:
-Eu prometo.

Anos mais tarde, lá está ele, sentado no mesmo trono, segurando a mesma coroa nas mãos e com as lágrimas caindo pelo rosto. Afonso não cumprira a promessa e isso o matava por dentro.
Durante muito tempo ele tentou. Foi um príncipe exemplar, dedicado, atento, o braço direito da avó. Porém, durante um ataque do inimigo, encontrara a camponesa que mudara sua vida.
Ela era linda, bondosa e completamente encantadora. Cuidara de Afonso até que a ferida de combate se cicatrizasse e ele pudesse caminhar. Durante o tempo em que passou com ela, o Rei sentira-se outro.
Livre, feliz, revigorado.
Humano.
Mas ela não sabia sobre seu sangue real e quando a verdade foi revelada, a camponesa rechaçara a coroa. Afonso nunca se sentira tão desesperado. Sua vó faleceu pouco tempo depois dele voltar e assim chegara a hora dele assumir seu destino.
Ele, contudo, não pôde. Seu ímpeto aventureiro e rebelde, o fazia desejar aquela sensação de liberdade que experimentara ao lado de Amália, a camponesa. Ele seria capaz de fazer tudo para estar ao lado dela.

E ele fez.

Contrariando todo seus ensinamentos, seus preceitos e obrigações, Afonso abdicara do trono em nome da paixão. Partira de Montemor deixando todo o reino a mercê da inexperiência e irresponsabilidade de Rodolfo.
Que belos tempos viveu sendo apenas um plebeu ao lado da amada, mas em suas veias corria o sangue dos Monferrato e o chamado do trono não pôde ser ignorado para sempre.
Montemor se desfazia aos poucos.  Rodolfo era um rei egocêntrico e indisciplinado, criando leis sem cabimento, provocando guerras sem sentido. A promessa que fizera ainda menino a avó, não parou de atormentar Afonso desde o momento em que ele percebeu o grande erro que cometera deixando toda a responsabilidade nas mãos do irmão. Finalmente entendera que não podia fugir do destino. E seu destino era reinar.
Passos no corredor tiram o rei de seus devaneios. Segura tão forte a coroa nas mãos que os nós de seus dedos estão brancos e gelados. Afonso solta um longo suspiro. Dentro de poucas horas estará se casando, um casamento arranjado, mais um acordo para deixar Montemor de pé, do que uma escolha do coração.
Mas Catarina....
Catarina tem algo que enfeitiça Afonso. Desde a primeira vez que a viu, com sua postura altiva, ao lado do trono do pai, ele sentira um certo encantamento por ela. A rainha é linda, é claro; qualquer homem cairia rendindo sem esforços aos seus pés,  mas não é  apenas isso que chama sua atenção.
Catarina, descobriu, é egoísta e mimada, alguém que não sabe ouvir um não como resposta, mas tem um enorme senso de liderança, um poder único de persuasão, e acima de tudo, é encantadoramente corajosa. Se seu coração não pertencesse a outra mulher, Afonso sabia que poderia se apaixonar verdadeiramente pela rainha Catarina.
Neste momento, a imagem de Amália surge em sua mente, fazendo-o fechar os olhos imadiatamente, como se pudesse espantar a memória de seu cérebro. O peso da coroa em seus mãos o obriga a se concentrar no futuro, Amália ficou em sua outra vida, é agora parte do passado que ele deseja e deve esquecer.
Afonso levanta a coroa até a altura dos seus olhos; a luz das velas estrategicamente colocadas por todo o salão, ilumina cada rubi cravejado no objeto, fazendo-o parecer feito de ouro e fogo. Com as mãos firmes, ele o devolve para sua própria cabeça, o lugar do qual nunca deveria ter saído.

Porque ele é Afonso Monferrato, Rei de Montemor, e está preparado para sacrificar qualquer coisa em nome do seu reino.

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⏰ Última atualização: Jun 29, 2018 ⏰

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